O tempo que perdemos sem saber

Fernanda Salla
O Centro
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5 min readSep 28, 2017
Foto: Fernanda Salla

Na época da escola, sempre fui uma estudante tranquila e “na minha”. Tirava boas notas, com algumas exceções (oi, química), não arranjava muita confusão e não fazia a menor questão de me destacar em alguma coisa. No Ensino Fundamental, estudei os nove anos na mesma escola e construí fortes vínculos de amizade que mantenho até hoje. Quando se tratava da vida escolar, nada mais fazia do que o solicitado. No Médio, a mesma coisa quando se pensa em disciplinas e notas. A diferença é que, em uma nova escola, não tinha tanta afinidade com as pessoas (durante os três anos).

Tenho ótimas recordações desses tempos. Sejam histórias dentro das salas de aula ou fora. Como não adorar o dia em que vinha “merenda especial” e passavam de sala em sala perguntando e contando quantos estudantes queriam? Como não enlouquecer com os 15 sagrados minutos de intervalo, ou melhor, recreio? Trabalhos que davam certo ou errado, nervosismos bestas em apresentações, maquetes que deveriam ser vistas como arte contemporânea (eu nunca tive o talento para elas). Amigos. Colegas. Professores.

O Fundamental foi ótimo. O Médio, necessário. Mas as coisas mudaram mesmo quando a faculdade se introduziu na minha realidade. Muito mais do que não precisar pedir permissão para ir ao banheiro, minha vida mudou completamente em 2013, ano em que comecei a cursar Comunicação Social. E o porquê não se dá por meio de um fato isolado. Vamos lá.

Cursando Jornalismo em uma faculdade na região metropolitana de Porto Alegre, comecei a ter contato com pessoas de outras cidades. De vários cantos do Rio Grande do Sul, para ser mais justa. Porto Alegre, Região Metropolitana, Vale dos Sinos, Litoral, Serra e alguns “perdidos” vindos da fronteira eram casos frequentes de colegas. Diversos sotaques, várias formas de ver a vida. Gente que veio de escola pública (assim como eu), gente — e muita — que veio de colégios particulares. Por si só, ter contato com pessoas de outras cidades já é enriquecedor. É troca de experiência. Contudo, a faculdade me transformou para além disso.

Saí do Ensino Médio com 17 anos. Imatura, como a maioria. Sem saber direito o que fazer da vida, continuei seguindo no automático dos anos anteriores. Felizmente, isso durou pouco tempo. Quando a gente une conhecimento e pessoas, vemos as coisas de outras formas. É inevitável. Para o bem ou para o mal. A ingenuidade sucumbe ao mundo tão diferente do que vinha sendo até então. E, para expressar com mais clareza sobre isso, vou falar de alguns assuntos que a academia me proporcionou que vão muito além da sala de aula. Aliás, vários deles nem foram discutidos de fato dentro de uma.

Faculdade é um período, acima de tudo, de descobertas. Do que a gente gosta, de quem a gente gosta, do que a gente é. Transitamos entre várias teorias e, com tantas trocas entre colegas, amigos e professores, vamos construindo e desconstruindo muitas coisas. Acabamos por nos colocar mais no lugar do outro e entendemos — ou deveríamos, ao menos — que somos seres extremamente privilegiados. Jamais pensei na minha condição de mulher, branca, cissexual, bi e classe média antes de entrar lá.

Nunca pensei nas estruturas que perpassam a sociedade e contribuem para que tenhamos uma sociedade desigual. Nem sabia da minha sexualidade com exatidão, só não me entendia. Não sabia o que era “cis” e “trans”. Por mais que eu não acreditasse que o capitalismo fosse justo, nunca havia parado para pensar no sistema econômico. Não me afetava muito. E digo isso longe de ser alguém com muito dinheiro.

A faculdade transforma muito, sabe? Mas não é sobre como ela me transformou que eu escrevo hoje. Esse texto, na verdade, é sobre o tempo. Mais especificamente, sobre o tempo perdido. Passei 12 anos da minha vida escolar sem pensar em quase nada para além das disciplinas. Na minha realidade, o período escolar era o que eu tinha de maior responsabilidade, já que não trabalhava. E por mais que a Literatura Brasileira tenha me permitido viajar, que a História tenha me ajudado a entender muita coisa, que as exatas, por vezes, tenham me desafiado, nunca foi algo para muito além na minha vida.

Não quero dizer, de forma alguma, com esse texto, que é necessário ir para a faculdade para “virar gente”. É a minha realidade. De alguns amigos, também. Eu tive esse privilégio. O que eu não tive e hoje sinto falta é a formação de um senso crítico desde jovem. Como eu queria, aos 13 anos, saber o que era Feminismo e me empoderar desde aquela época. Tudo seria tão diferente. E não só para mim. Nesse caso, para todas. Como eu gostaria de ter entendido desde jovem que gostar de mais de um gênero não é errado, não é estar confusa. Como eu amaria ter levado as aulas de filosofia mais a sério e tentar compreender o que Marx dizia no Manifesto Comunista, visto que ninguém parecia se importar também.

No meu tempo, não éramos ensinamos a pensar “fora da caixa”. Os poucos que tentavam, como meu professor de filosofia do Ensino Médio, não eram levados a sério. Era um tempo em que a gente não precisava ver problemas. Só os matemáticos em que Joãozinho tinha quatro maçãs e Mariazinha, três. Mas pensar no mundo além das disciplinas, muito pouco. Como eu queria ter prestado mais atenção nas aulas de sociologia, ter tentando entender de fato o porquê das coisas históricas terem acontecido ou participado mais ativamente quando, novamente, o professor de Filosofia fez uma roda na sala de aula para falar da Primavera Árabe.

Não fiz. E não me culpo por isso. Não foi uma simples falta de interesse. Não éramos ensinados a ver essas coisas. Hoje fico muito, mas muito feliz em ver que esse tipo de debate é levado às salas de aulas. Que professores se empenham em falar sobre gênero, sexualidade, raça, classe e tanta coisa que contribui para que possamos abrir os olhos, ver onde estamos inseridos, quais são nossos marcadores sociais e os nossos privilégios no meio disso tudo.

É uma pena — além de estar cada vez mais assustador — ver a onda conservadora que se alastra pelo mundo e que tenta banir alguns desses debates em sala de aula. Mas eu, que de otimista não tenho nada, ainda acredito que a gente vai vencer. Que a próxima geração vai ser melhor, menos preconceituosa, cada vez mais cedo entendendo que o que é naturalizado deve ser desconfiado e repensado. Como diria Belchior, “no presente a mente, o corpo, é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Que possamos rejuvenescer.

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Fernanda Salla
O Centro

escrevo sobre o que vier à cabeça | jornalista