Quem vai vencer hoje?

O medo irracional é uma escala

Roberta Roth
O Centro
5 min readMay 2, 2017

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O parquinho daquele salão próprio para festas infantis parecia um tanto vazio. Não pela falta de crianças para preenchê-lo, mas em comparação à capacidade cabível no ambiente. É comum que aniversários de crianças pequenas sejam mais povoados por adultos do que por pequenos, como era o caso, mas nesse dia também havia uma alta densidade demográfica de bebês, desses que nem caminham ou falam ainda.

O nosso grupinho, que tinha passado a última meia hora regando a conversa e a comilança com cerveja em uma mesa mais afastada dos brinquedos e mais perto da comida, finalmente se aproximou da mesa de pebolim, fla-flu, como quer que se chame aquele futebolzinho com homens estáticos atados em varas que quando giram no próprio eixo servem para dar impulso a uma bola diminuta. Antes mesmo de começar a partida, o aniversariante roubou a atenção com sua fofura e curiosidade, características intrínsecas de crianças que estão felizes em sua festa de um ano. Fiquei surpresa que ele aceitou sair do colo da vó e vir pro meu, mas o sentimento logo evaporou quando percebi que na verdade ele nem queria saber de colo: queria que segurasse as suas mãos pela altura dos meus joelhos e o ajudasse a dar passos que não eram os primeiros mas ainda eram bem tortos.

Engraçado pensar que se usa a referência de passos tortos livremente pra julgar quando alguém não está se saindo bem naquilo que se propôs, mas que praticamente todo mundo aprendeu a caminhar com esses mesmos movimentos erráticos de colocar um pé ligeiramente mais à frete do outro. E para aquela criança que ainda não tinha destreza pra fazer andar sozinho, colocar pés um na frente do outro sucessivamente não era o suficiente, ele queria colocá-los um mais acima do outro. E assim, rumamos a uma escada.

Subimos, ele por vontade e eu por responsabilidade, até o topo onde uma recreacionista avisou que não devíamos seguir adianta. Eu era muito grande em tamanho para as pontes móveis que circundavam o local, e o outro muito pequeno. Com um semi-bebê contrariado, resolvi logo sair dali pra que não houvesse drama, choro, grito ou manha. Peguei-o no colo, senti o peso de uma criança que não representava ter tantos quilos e descemos.

A escada era íngreme, tinha degraus curtos e com a única mão livre fui tateando às minhas costas em busca do corrimão, que consegui alcançar. Dei o primeiro passo, andando de lado, em direção ao degrau mais abaixo. Comecei com a perna errada, terminando com pés cruzados em dois degraus diferentes e uma criança pesada no colo. Quando fui dar o próximo passo, me desequilibrei. A mão suada que agarrava o único apoio que eu tinha se desvencilhou. A cena era tão cinematográfica que eu consegui, em tempo, passar os dois braços ao redor do pacote humano que carregava para tentar protegê-lo da queda.

Primeiro foi minha canela batendo na quina de um dos degraus, que também raspou o joelho do outro pé. Nesse ponto alguém já tinha notado o que se passava e gritou, alertando todos que ouviram. Enquanto outras partes do meu corpo batiam e raspavam durante a queda, o que mais me causava dor era a mãe chamando pelo filho de longe. Eu o envolvi como pude com meus braços e corpo, mas não conseguia proteger aquele ser tão novo no mundo sem ter nenhum ponto de equilíbrio. Pareceu uma eternidade até atingirmos o chão.

Caíamos de frente e, para não soltar a criança, eu tentei me virar. Queria ser uma espécie de amortecedor da queda. Não sei se o que chegou primeiro foi meu cotovelo, que nunca mais voltou a sua saúde anterior ao acontecido, ou o osso zigomático do aniversariante, que logo depois recebeu o chão com a parte lateral do crânio. Ao me dar conta do resultado dessa cena, com o coração acelerado, eu volto pra realidade.

Suando frio e com arrepios na espinha, olho pro celular no braço do sofá e vejo que não há mensagens novas. Há mais de meses que essa cena trágica aparece na minha mente como se fosse uma premonição, mas a verdade é que o evento se passou sem nada de atípico e que a descida da escada foi perfeitamente normal e segura. Tanto que depois de uns choramingos ao ser devolvido ao chão e aos cuidados do pai, ainda tive a oportunidade de perder umas partidas de pebolim na festinha.

O medo do que poderia ter sido uma tragédia, com consequências sérias, me assombra quando deixo a mente viajar pela imaginação. E essa não é a primeira vez que a possibilidade, mesmo que ínfima, me tira o sono, a tranquilidade, a sanidade. E isso é assustador em mais de um nível.

O medo das possibilidades, do que pode ou poderia ser, é um medo em si. Adiciona-se a ele um medo ainda mais profundo e mais assustador: o medo de não conseguir controlar esses medos e não ser mais capaz de discernir realidade de possibilidade, vida real de sonho, finais felizes de tragédias. O medo de ser absorvida pelo medo é assombroso.

Por algum tempo andar de carro, principalmente na carona, era uma batalha mental em que a cada cinco minutos eu precisava lembrar pra mim mesma, com a voz da sanidade e consciência, de que a possibilidade de sofrer um acidente era pequena. Por isso, o meu maior medo é permitir que esse pequeno medo, meio insano até, tenha a voz mais alta e tome conta da minha vida.

A batalha entre a voz da realidade e a do medo é diária. Na maioria das vezes a do medo perde feio, mas nem sempre. Tem dias que ela ganha. Quando isso acontece só consigo lidar de uma forma: esperar o dia de amanhã e torcer e encorajar a voz do bom senso. Cada dia é melhor, cada batalha vencida enaltece a realidade e me faz lembrar de que alguns, talvez muitos, medos são totalmente sem fundamento. E que ter medo de ter medo também é uma preocupação infundada.

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Roberta Roth
O Centro

Jornalista, Brasileira e em dúvida. Já deitei no trilho do tram em Amsterdã.