Seu primeiro dia de liberdade

O custo de tudo o que você perdeu

Mateus Feld
O Centro

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O que você estava fazendo há 5 minutos? Ou há meia hora atrás?

E se você não pudesse mais fazer isso por vinte anos?

Peguei-me, durante a última semana, pensando sobre o valor da liberdade. O valor que há em poder, simplesmente, escolher o que eu quisesse comer. Ou escolher um filme entre as centenas disponíveis na Netflix. O valor de decidir algo e simplesmente poder realizar essa ação.

E, ao pensar em valor, também pensei em custo. O custo de não ser livre — ou, o que perdemos quando perdemos a liberdade de escolher? Tentei sintetizar isso tudo de alguma forma que fizesse sentido em minha cabeça, e cheguei à conclusão de que uma boa maneira de analisar o valor da liberdade, ou o que ela representa, seria pensar sobre o seguinte:

Qual a primeira coisa que você faria como uma pessoa livre?

Em Deuses Americanos, romance escrito por Neil Gaiman, conhecemos Shadow, o protagonista, cumprindo os últimos dias de sua pena de três anos na prisão.

Durante seu tempo em confinamento, Shadow cria uma lista de coisas que ele faria assim que saísse da cadeia. A lista vai ficando cada vez mais curta, com o passar do tempo. Ao fim, ele a havia resumido em três coisas:

  • Primeiro, ele tomaria um banho. Um banho longo e sério.
  • Segundo, ele pegaria sua esposa nos braços e a levaria para o quarto, trancando a porta em seguida. Eles pediriam pizza se ficassem com fome.
  • Terceiro, ele baixaria a cabeça e ficaria longe de problemas para o resto da vida.

Banho, amor, comida e… Bem, tentar prolongar isso tudo para o resto de sua vida. Decidi pesquisar um pouco sobre isso para saber se Shadow estava sendo coerente em suas escolhas.

Procurei por relatos de ex-presidiários sobre quais as primeiras coisas que fizeram ao sair da prisão e encontrei diversas histórias interessantes no Reddit, bem como em outros cantos da internet. É uma análise bastante simplista, é claro. Porém, entendo que essas coisas sejam, então, algumas de nossas principais urgências, alguns de nossos principais desejos, como seres humanos livres.

Essas são as principais “primeiras coisas” que ex-presidiários buscam fazer ao recuperarem a liberdade:

1- Uma boa refeição (incluindo álcool)

O ser humano moderno sempre viu o ato de comer como um dos principais prazeres ao seu dispor. Poder escolher sua própria refeição ou matar o desejo de comer aquele prato específico parece ser um dos principais deleites proporcionados pela liberdade.

“A primeira coisa que fiz quando saí foi ir ao Denny’s! Pedi um All American Grand Slam com panquecas, bacon, salsicha, ovos, presunto, hash browns, manteiga e um suco de laranja. Comi cada pedaço e amei. Eu estava acompanhando de minha família e minha amável namorada, que parecia querer chorar ao me ver comer após estar tão faminto” — throwaway040404

Dentre os relatos pesquisados, comer o que quiser é a primeira coisa que a grande maioria das pessoas decide fazer ao sair da prisão. O ato de comer não é mais sobre necessidade, mas sobre sentir-se completo e satisfeito. É também, talvez, a melhor representação do prazer de poder escolher.

“Outra experiência surreal foi parar em um restaurante e almoçar com minha família. Na cadeia, dão poucas opções do que comer aos presos, mas no restaurante, o menu tinha mais de 50 itens para serem escolhidos […] e eu achei isso extraordinário” — Brian E. Oliver

É bem esperado, também, que beber uma cerveja ou um taça de vinho fosse um dos itens que encabeçasse essa lista. Além do fato óbvio de que beber e comer andam juntos nessa equação, o álcool sempre teve um papel importante na história da humanidade, e o ser humano sempre tirou muita utilidade do seu consumo. Além disso, beber também carrega consigo um sentimento e uma imagem muito fortes de liberdade.

“Eu bebi uns seis copos de cerveja DE VERDADE” — fishflinger

“Eu fui pra casa, bebi uma garrafa de Merlot e comi um bife” — Lvx0pher

2 — Um banho quente

Não é apenas o fato de que um banho quente relaxa os músculos e nos faz sentir bem. Existe, também, uma relação bastante estreita entre liberdade e privacidade. É você cuidando de você mesmo, da maneira que achar melhor.

“Eu tomei um banho de uma hora, sozinho, pela primeira vez em um ano” — anasmguy

“Tomei um banho de duas horas pra tentar lavar a sujeira da prisão, e foi tão bom ter uma cortina e não estar cercado por 50 homens pelados” — v1LLy

Há também, eu diria, o lado psicológico de banhar-se. Não somente limpar-se da sujeira física, mas também, figurativamente, lavar-se do tempo de cárcere. “Lavar a alma e a mente”, como dizem. Você faz isso após um dia estressante no trabalho. Imagine depois de anos emprisionado.

3 — Roupas novas

“Ah, o sentimento de deslizar seu pé pra dentro de um bom par de calçados! Jeans com bolsos. Felicidade estranha pelas coisas pequenas. Tudo demais pra conseguir lidar” — ARTFIENDING

Essa foi uma das partes mais curiosas entre os relatos que encontrei. Eu nunca havia parado para pensar no valor de minhas roupas. Nunca havia refletido sobre o quão bom é o toque de um tecido limpo e macio contra a pele. Ou, simplesmente, o quanto me sinto bem em uma vestimenta que representa minha personalidade ou os meus gostos.

“Meu irmão […] quis ir comprar novos pijamas e cobertores pois ele sentia falta de dormir em roupas macias” — Tittysprinkles22

Nós expressamos boa parte de nossa individualidade e / ou personalidade através da maneira como nos vestimentos. Dentro da prisão, todos são iguais — sua individualidade vai para o ralo. Você é só mais um.

Ter a opção de vestir-se como quiser é recuperar a liberdade de representar sua personalidade ou seus sentimentos.

“A primeira coisa que fiz foi trocar de roupa. No estacionamento, mesmo. Vesti calças que tinham um botão e um zipper, e uma camiseta que não fosse branca ou azul”— Technobucket

4 — Atualizar-se

“Passei um tempo com um celular, e fiquei maravilhado com toda a tecnologia que foi inventada. O mundo todo havia mudado tão radicalmente que me senti perdido” — skurfer69

Esse é um ponto fascinante e que também aparece na maioria dos relatos: as pessoas buscam atualizar-se com tudo o que foi criado, produzido, disseminado. Tecnologias, música, filmes, obras, invenções. O que você imaginar.

Hoje, é difícil sentir-se como parte da sociedade sem estar inserido no contexto tecnológico. Quase tudo gira em torno de tecnologia. Para alguém que parou no tempo, pode ser difícil acompanhar assuntos, ou manter uma conversa longa com alguém, sem que aquele vídeo do Whatsapp, aquele post em tal site ou rede social, aquela série nova da Netflix ou aquele carro que dirige por conta própria sejam mencionados. É difícil voltar à sociedade e sentir-se parte dela.

“Quando eu vim pra casa [depois de 22 anos], eu quase surrei esse garoto branco porque ele estava falando no bluetooth, a peça que vai no ouvido. Eu disse ‘Fale na minha cara, branquelo, que eu dou uma surra do caramba em você’. Então eu vejo mais alguém falando sozinho. Nesses 22 anos, todo mundo está andando na rua falando com a porra de si mesmo” — René Peterson

Imagine-se sendo preso hoje, por 10 anos. Pense sobre todos os avanços que você não vivenciaria. Tudo o que você não vai acompanharia. Todas as descobertas feitas. Para alguém que gosta de tecnologia, pode ser bem pavoroso. E, mesmo para alguém que não se importe tanto assim com tecnologia, acredito que o choque de realidade ao incluir-se novamente na sociedade seria estrondoso. Imagine não compreender mais a sociedade ao seu redor da mesma forma.

A história de Otis Johnson, que passou 44 anos em cárcere, é ideal para pensarmos sobre isso. Ele foi preso aos 25 anos, em 1975, pela tentativa de assassinato de um policial, e só saiu em 2014, aos 69.

Otis Johnson, livre. Foto: Jenna Belhumeur / Aljazeera

Otis mal teve tempo de se acostumar com a ideia de um computador pessoal, e de repente está inserido em uma sociedade que tem o mundo na palma da mão. Ele pisa na Times Square e se depara com esse mundo de luzes, telões coloridos nos prédios e um número monstruoso de pessoas com seus telefones e fones de ouvido.

“Eu olhei pras pessoas e pensei comigo mesmo: pera aí, todo mundo entrou pra CIA ou virou um agente ou algo assim? Porque é a única coisa que consigo pensar, alguém andando por aí com fios nos ouvidos” — Otis Johnson

É admirável ver Otis falando sobre como ele olha apenas para o caminho à sua frente. Sobre como segurar-se à raiva apenas leva à estagnação. E ele segue em frente, tentando decidir o que comer no jantar em meio a tantas opções. Tentando identificar os sabores dos refrigerantes em meio a tantas cores diferentes. E, também, maravilhando-se com potes que contêm pasta de amendoim e geleia em um só.

5 — Ficar sozinho e em silêncio

“Eu não peguei nada pra comer, eu não tentei ligar pra ninguém pra arrumar sexo, eu só entrei no meu carro e comecei a dirigir. Eu não estava dirigindo para nenhum lugar, eu só queria ficar sozinho. […] Eu dirigi até o sol nascer e foi a maior liberdade que já senti” — chiefer0655

Esse foi um item que me surpreendeu. Quando comecei a pensar sobre “a primeira coisa que você faria ao sair da prisão”, consegui imaginar que alguns dos outros 4 itens estariam bem próximos do topo dos mais relatados.

Ficar sozinho, entretanto, não passou pela minha cabeça. E como é óbvio, agora que penso sobre isso.

“Eu saí pra caminhar. Minha intenção era me perder em algum lugar. Não me importava onde. Achei um bom espaço pra deitar na grama e fiz exatamente isso. Deitei lá e me perdi. Sem pensamentos, sem sentimentos, sem memórias. Só o vazio com o qual aprendi a preencher a minha mente. Quase como se eu pudesse, e quisesse, simplesmente morrer lá. E eu acredito que foi exatamente o que aconteceu. Eu deixei tudo lá naquele lugar. Eu morri lá. Eu sempre tento visitar esse lugar uma ou duas vezes ao ano. Sempre que preciso me lembrar de onde estou hoje. E pra me lembrar onde eu estive antes” — ARTFIENDING

Na prisão você está sempre rodeado por alguém. Você dorme com alguém. Você usa o banheiro e toma banho com alguém. Você come com alguém e se exercita com alguém. Pois você não tem escolha — não tem liberdade pra escolher estar sozinho. E, se você não está com alguém, você está sendo vigiado.

Além disso, não existe silêncio: sempre há alguém falando, chorando, batendo em algo, brigando ou ficando louco. Há relatos, até, sobre a dificuldade de dormir no silêncio nos primeiros dias de liberdade, por não estar acostumado.

“Peguei uma cadeira dobrável e sentei em meio às árvores nas montanhas por umas 3 horas… Eu tinha esquecido o “som” do silêncio” — schreebz

A liberdade está nas pequenas coisas

Escrevendo esse texto me dei conta de que certas coisas têm um valor inestimável: uma boa refeição (seja um banquete completo ou um hambúrguer com cerveja no seu fast-food favorito). Um banho quente e roupas limpas. Sentir-se parte da sua sociedade e do seu tempo. Poder estar sozinho e em silêncio.

Quando você lê sobre pessoas que perderam tanto, por tanto tempo, você começa a pensar bem a fundo sobre isso. É aquilo que dizem: apenas valorizamos as coisas quando as perdemos. Um tanto quanto clichê, sim; mas clichês só existem por serem verdadeiros.

É claro que esses indivíduos estão, na maioria dos casos (espero eu), pagando o preço por suas escolhas e ações. Minha intenção não é a de causar uma sensibilização para com elas. Usar o exemplo de ex-presidiários foi apenas o método que escolhi para analisar o “custo” de não se estar livre.

Minha intenção é de que pensemos, a partir das histórias dessas pessoas, sobre o valor de nossas escolhas: afinal, ser livre para fazer uma escolha é também ser livre para fazer uma escolha errada, e toda decisão carrega uma consequência nas costas. É bem provável que a maior parte daqueles ex-presidiários tenha feito uma escolha errada em algum momento de suas vidas. Eles tiveram liberdade para isso. A responsabilidade é uma das condições da liberdade.

E também no valor de ser livre para comer, vestir ou ir para onde quiser. O valor de poder estar sozinho. O valor de estar com quem quiser. O valor das pequenas coisas. Aquelas que valem a pena mesmo, e que realmente nos fazem felizes — apesar de quase nunca percebermos isso.

No fim, Shadow estava certo, em sua lista. Ele não é o cara mais esperto no romance de Gaiman, mas nisso ele estava certo.

Quanto ao custo de não ser livre? Me parece alto.

Alto demais.

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Mateus Feld
O Centro

Fundador da adormecida publicação O Centro. Eventual escritor de contos curtos, curtos demais.