“Você ama é o caralho”

Mateus Feld
O Centro
Published in
4 min readJun 27, 2017

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Amor. Tente pensar sobre o peso dessa palavra enquanto você a pronuncia. Respire fundo e repita, devagar:

A-mor.

Como você pode dizer que ama qualquer coisa? Ou qualquer pessoa? Quer dizer, nós falamos isso o tempo todo. Mas como pode ser verdade? Como pode ser, na forma absoluta do amor?

Nossos amores são bipolares, egoístas, instáveis, inseguros e mal-humorados. Nossos amores são como uma criança que se incomoda com algo que nem faz sentido e então resolve começar a chorar e ninguém entende o porquê. Muitas vezes choramos e não entendemos o porquê. Apenas sentimos.

É porque nossos amores são frágeis como papel higiênico. Mas não há escapatória: nós precisamos tentar amar algo (da mesma forma como precisamos de papel higiênico). É da nossa natureza.

“Eu amo medicina”

Eu amo ir pra balada no final de semana”

Eu amo você”

E quando você estiver perdendo aquela garotinha na mesa de cirurgia por ter errado um procedimento? E quando ela morrer e você ver os pais dela abraçados, chorando? Nesse momento, você vai amar medicina da mesma forma que amava no primeiro semestre da faculdade?

E quando você estiver no calor da balada mas seu coração estiver paradinho lá dentro, pensando naquela pessoa sozinha em casa? Quando toda noite você sai da pista e senta em um canto com o queixo deitando na palma da mão, você ainda ama a balada?

Quando você pensa duas vezes antes de falar “eu amo você”.

Nossos amores não são absolutos: como podemos dizer que amamos algo quando em certos momentos esses “algos” nos fazem mal? E não seria a maldade o oposto do amor? É complicado. Somos complicados, afinal. Mesmo assim, batemos o pé e insistimos: “mas eu amo!”.

Somos cabeça dura, mesmo. Ou então, talvez, o amor viva e persista em nossa capacidade de superar esses momentos de adversidades e de não-amores, e ainda continuar acreditando que “sim, eu amo, pô!”. E aí levantamos, respiramos fundo e voltamos para a sala de cirurgia, para o fervor da pista ou para os braços queridos que nos esperam.

Eu, que amo tanto

É complicado usar a palavra “amor”. Charles Bukowski tem uma passagem icônica, em que ele diz mais ou menos assim:

“O amor é uma forma de preconceito. Você ama o que você precisa, você ama o que lhe faz sentir bem, você ama o que é conveniente. Como você pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras pessoas no mundo que você amaria muito mais se você um dia as conhecesse?”

Charles Bukowski

É exatamente isso. Nós amamos por aversão ao risco. Gostamos de acreditar nas magias da casualidade. E então, quando a encontramos, “amamos o que é conveniente”. Pois gostamos de amar e de nos sentir amados. Entretanto, não sabemos lidar com isso completamente. Acabamos tropeçando e ficando em dúvida. E aí fica o questionamento: existe amor na dúvida?

Logo em seguida, o velho Buk continua sua passagem, cravando:

“Mas você nunca conhecerá essas pessoas. Então tudo bem, fazemos o melhor que podemos. Concedido. Mas nós ainda precisamos entender que o amor é só o resultado de uma casualidade. A maioria das pessoas dá valor demais pra ele.”

Pois é. O amor é só o resultado de uma casualidade. Amamos muitas das coisas que amamos por causa de momentos bem específicos de nossas vidas. Muitas vezes, inclusive, momentos em que não temos controle total do que acontece ao nosso redor.

A infância, sendo a época das descobertas, é responsável por muitos de nossos amores futuros. “Amamos” esportes, músicas, filmes, ídolos, lugares — tudo isso simplesmente porque nossos pais, amigos ou familiares, nos encantaram com esses amores. E então criamos, desenvolvemos e adaptamos paixões sem muitas vezes saber qual foi a faísca dessa chama.

Essa casualidade do amor também nos acerta quando mais velhos: quando estamos com a guarda baixa e ela nos nocauteia. É quando, em meio às dez mil pessoas certas para nós no mundo, uma delas, umazinha, por algum motivo absurdo e sem explicação, faz qualquer besteira que nos deixa com os olhos brilhando — um sorriso, um bom dia, uma ajuda no trabalho, o uso de uma palavra certa. Novamente, não temos controle, e dificilmente saberemos qual foi essa coisinha tão específica, tão molecular, que nos conquistou.

Acreditamos que, em meio a sete bilhões de pessoas diferentes, aquela uma que trabalha no mesmo bairro e que almoça no mesmo restaurante que você — em meio a todos os trabalhos, bairros e restaurantes que existem — , naquele período específico de sua vida, é a sua alma gêmea. Ela lhe deu um sorriso antes de colocar o garfo de macarrão na boca e pronto. Fodeu. É isso aí. Sua metade da laranja. Seu copo transbordado. Borboletas no estômago.

Amamos um milhão de coisas e não temos controle sobre nenhuma. É frustrante. É ridículo. Temos um relacionamento abusivo com o amor: ele nos dá bordoadas, nos deixa no chão e então ri da nossa cara. E nós levantamos e o abraçamos. E depois nem sabemos direito os motivos.

Ahh, poder um dia conversar com o velho Bukowski sobre isso tudo. Eu, que amo tantas coisas… Talvez, em meio a cervejas e desabafos, ele soubesse me dizer o porquê. Talvez, antes de ir embora, o velho safado olharia para mim e diria: “você ama é o caralho”.

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Mateus Feld
O Centro

Fundador da adormecida publicação O Centro. Eventual escritor de contos curtos, curtos demais.