Contos

O Verdadeiro Tesouro

Pablo Gauna
O Chamado do Guerreiro
9 min readSep 1, 2020

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Olá, meu nome é Leopold. Gostaria muito de retornar ao tempo: dois anos atrás, para ser mais exato…

Os negócios estavam indo de vento em popa: precisei contratar o dobro de pessoal para realizar os edifícios demandados à minha Construtura naquele ano. Chegava a trabalhar 12, 14… 16 horas por dia, extendendo esta jornada aos finais de semana. Minha filha Fernanda estava com seis anos quando Letícia (minha esposa) dera à luz Bianca — a nova princesinha da casa. Desde então, contratara alguém para gerir suas franquias de artigos orientais para dedicar-se exclusivamente às nossas filhas.

Sempre fui um pai e marido presente, compartilhando bons momentos em família: costumava contar ou ler histórias para Fernanda antes de dormir e, assim que o sono surgia, orávamos juntos. Com Letícia, tínhamos o hobby de cozinharmos juntos e - como um bom casal - namorar antes de dormir.

No entanto, isso agora acontecia raramente e inúmeras vezes chegando em casa encontrando Letícia dormindo em nossa cama — sempre fora compreensiva quando dizia que os negócios estavam indo a um novo patamar e precisava de mais tempo no trabalho — e Fernanda deitada no sofá, aguardando o retorno de seu pai.

Eventualmente acompanhava Letícia amamentando Bianca pela madrugada: não via a hora de ter tempo para mais momentos como aquele em minha vida….

Mas… mas…

(Fotografia: Felipe Salgado)

Era um sábado, durante o café da manhã, quando Letícia me disse:

- Leopold, hoje nossa filha tem o aniversário de seu coleguinha João. Eu gostaria muito que você fosse busca-la após a festa: ela sente muito a sua falta…

- Ok. Preciso resolver umas coisas simples na Construtura hoje e de lá vou direto busca-la.

Seu olhar dirigido a mim foi de “estou confiando em você nisso, não me decepcione”, visto que naquele ano deixava — muitas vezes — de cumprir com o que eu falava, sobrando a ela cumprir o combinado. Aquele dia não seria diferente…

- Por favor, meu bem… eu sinto muito… Aconteceram alguns imprevistos, mas retorno à casa antes do jantar. Diga à Fernanda que eu prometo. É um novo patamar, para o bem da família…

Nem sei porque fazia aquilo, pois o financeiro não era mais problema. Porém, a Construtora estava entre as TOP 5 da cidade e queria que a minha fosse a melhor delas…

(Fonte: Pick Pik)

Assim que encerrei as atividades daquele belo dia de sábado, percebo que ainda eram 19h08 — tempo suficiente para buscar Fernanda às 19h30 na festinha.

Eis que — minutos depois — recebo a ligação de um número desconhecido:

“Que número é esse?” — Pensei comigo.

- Olá, Sr. Leopold. Aqui é a Susan, do Hospital São Benedito. Preciso que o senhor compareça imediatamente à Ala de Emergência aqui do Hospital: sua esposa e filha sofreram um acidente de carro na autopista e encontram-se em estado grave.

(Fotografia: Matthew T Rader)

Tenho a leve sensação das coisas ficarem devagar ao meu redor e — como se estivesse debaixo da água, a única coisa que conseguia ouvir era meu coração palpitar aceleradamente. Uma leve tontura me fez perder o equilíbrio, obrigando-me a apoiar o braço esquerdo em um dos contâineres do canteiro de obras. Deixo o celular cair da mão e saio impulsivamente em direção ao estacionamento onde deixara meu veículo.

- Sr. Leopold? Sr. Leopold?…

Tateando meus bolsos para pegar as chaves, saio tropeçando pelo acidentado canteiro de obras daquele mais novo edifício — intitulado Soberano — até chegar ao carro. Minhas mãos estavam trêmulas e estava difícil encaixar a chave na ignição. Uma, duas… três tentativas para dar a partida no carro.

A única coisa que passava por minha cabeça era chegar rápido ao Hospital, esquecendo até mesmo de respirar direito. Durante o trajeto até o Hospital, os olhares cruzados com as pessoas na rua pareciam estar me julgando ou dizendo que sabiam o que estava acontecendo.

Há algumas quadras antes de chegar ao destino, uma criança acompanhada de seus pais na rua me faz recordar de algumas cenas da conversa que tivera com Letícia no café da manhã daquele dia.

“Meu Deus, o que eu fiz!”

(Fotografia: Jake Espedido)

Chegara desorientado ao São Benedito (o Hospital), sem me preocupar se estacionara ou não corretamente. Entrei com tensão e nervosismo na Ala de Emergência e, imediatamente, as enfermeiras perceberam minha afobada presença.

- Onde está Susan?! Eu preciso falar com a Susan!

- Calma, Sr. Vou chama-la imediatamente. O que acont…

- Pelo amor de Deus, preciso saber da minha filha e esposa!

(Peso no ar)

- Sr. Leopold?

- Sim, sou eu!

- Olá eu sou a Dra. Susan: falamos pelo telefone. Venho lhe informar que sua esposa está num processo cirurgico e encontra-se fora de risco até o momento. Porém… sua filha… acaba…

- …

- Eu sinto muito…

Aquela tontura que tivera no canteiro do Soberano invadira minha cabeça novamente, asssim como as coisas ao redor silenciando-se e movendo-se vagarosamente… Agora encontrava-me ajoelhado no chão, chorando tanto quanto um criança. Pensamentos negativos invadiam minha cabeça e a Construtora… aquela merda de Construtora! A merda de pai que eu tinha sido até agora!

Para minha desgraça, não demorou muito me informarem que Letícia não resistira à cirurgia e viera a falecer também.

Era o fim do mundo, não sabia o que fazer naquele momento…

Pelos próximos 12 meses, meus pais assumiram a guarda de Bianca — visto que os pais de minha falecida esposa (assim como eu) estarem sem condições emocionais da perda não somente de uma das netas, senão de sua única filha. Neste período, vendi a Construtora e abandonei tudo o que não fazia mais sentido para mim.

Muitas vezes sentia vontade de me matar, até que um dia meu “velho” achou estranho não ter retornado às suas ligações naquela manhã e — como que instintivamente — saiu rumo à minha casa, encontrando-me quase morto na banheira com água quente, após tentativa de suicídio.

Fiquei internado alguns dias no Hospital até me recuperar da situação, mas a culpa era a única coisa que não cicatrizava em mim.

(Fotografia: Daan Stevens)

“Eu sou um merda! Não mereço viver!”

E, novamente, voltei a me flagelar. Desta vez entrara em coma alcoólico num bar fuleiro de esquina, onde milagrosamente um taxista amigo de meu pai me reconhecera — estirado no chão — e levara-me imediatamente ao Hospital. Se não fosse ele, teria engasgado com meu próprio vômito.

Eu estava depressivo, não queria mais viver… a culpa não saía de meu peito:

“se eu tivesse agido da maneira certa… Se tivesse sido pai e marido de verdade…”

Ficar em casa era a pior coisa, pois me trazia lembranças que faziam-me sentir mais culpa por tudo que acontecera. Chegou um ponto onde optei por dormir na rua — vivendo deploravelmente — consumindo as mais diversas drogas possíveis, tentando esquecer de tudo e me escondendo de todos, pela vergonha de quem eu era e o que fizera.

“É isso que eu mereço, eu sou um merda!”

Chegou um ponto que estava tão drogado que não conseguia distinguir mais a realidade; minha vida tornara-se um pesadelo infinito.

Novamente em coma fui surpreendido por um grupo Hare Krishna que, avistando-me estirado no chão, levaram-me até seu Templo. Um de seus membros — que fora médico por anos e agora optara apenas por aquela simples vida no Templo — cuidava de mim, enquanto outros do grupo limpavam meu corpo com toalhas encharcadas de água quente.

Após retomar à consciência mais tarde, eles juraram que — apesar de eu não lembrar do que ocorrera — não teriam notado minha presença se não estivesse agoniando no chão, aclamando por ajuda.

Com a sensação de acolhimento trazida por eles, tomo coragem para contar sobre como fui parar nas ruas e lágrimas — por parte de alguns deles — começavam a ser derramadas.

Shivakumar — o médico que cuidara de mim e membro mais velho do Templo — tocara meu coração e acabou por me convencer a ficar alguns meses naquele local, que trazia paz e senso de comunhão fraterna. Durante o período que estive ali, minhas feridas da culpa começavam a cicatrizarem-se e consequentemente uma enorme mudança interna começara a acontecer.

(Fonte: Wikimedia Commons)

Num local como aquele Templo, finalmente conseguira encontrar uma paz interna, que me proporcionara um lindo sonho o qual me transformou por completo:

Estava em meio à um lindo pasto num dia ensolarado, com um caminho que partia de onde me encontrava. Seguindo ele, sentia um calor aproximar-se de meu corpo a cada passo que dava. Após caminhar por um momento, encontro Letícia e Fernanda no final da trilha. Choro muito, mas desta vez eram lágrimas de saudades, não mais de culpa. Expresso meus sentimentos de desculpas e as saudades que sentia delas. Elas — negando com a cabeça — diziam que não precisava me sentir mais culpado e que agora elas estavam num lugar bem melhor. A única coisa que elas me pediram foi aproveitar a vida da maneira mais rica possível, com amor e atenção.

Ao acordar daquele sonho — comovido e feliz ao mesmo tempo — meus pensamentos voltam-se a minha filha Bianca, em meus pais e nos pais da minha amada e falecida esposa… Por um bom tempo, abandonara a tudo e a todos por vergonha e impotência, mas agora sentia-me forte e mais consciente da vida e minhas ações a partir daquele momento.

Falo com Shivakumar sobre minha nova caminhada, agradecendo-o muito por tudo o que aquele grupo me ofertara e com muita emoção despeço-me do grupo, que me acolhera como uma verdadeira família.

(Fotografia: Андрей Бетев)

Agora me chamo Arjuna Punarjāta e — assim como o guerreiro das escrituras do Baghavat Gita — venço uma guerra interna e nasço novamente, a uma nova realidade. Ao retornar à casa de meus pais, fica muito difícil conter as emoções e abraçamo-nos por um longo tempo. Os pais de Letícia são avisados pela minha mãe de meu retorno e, imediatamente, vão até nosso encontro, trazendo Bianca — que agora passava um tempo com cada um dos avôs e avós.

Meu coração ainda dói por feridas do passado. Mas, agora, encontra-se cicatrizado e em paz. Se tem uma coisa que aprendi nestes dois últimos anos é que a vida pode mudar completamente num piscar de olhos: definir prioridades nos faz valorizar e investir melhor nosso tempo; pensar que morreremos em breve nos faz melhorar nossas atitudes e caráter.

E o que realmente importa não é o que levamos daqui — afinal de contas, tudo está fadado à poeira — senão o que deixamos aqui para o próximo. Ainda tenho meus pais e minha filha Bianca: não sei até quando viveremos, mas serei o meu melhor todos os dias.

O físico é passageiro, mas a alma e o amor são eternos…

(Fotografia: Sidney Severin)

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Abraços de Falcão,
Pablo Gauna

Escritor do blog O Chamado do Guerreiro.
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Pablo Gauna
O Chamado do Guerreiro

“We are a circle within a circle, without a beginning and without an end”