1970, o ano em que a ditadura dominou o futebol

A conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira serviu de palanque para o regime militar, e Pelé foi o garoto propaganda

Lucas Mao
O Contra-Ataque
6 min readMar 31, 2021

--

Carlos Alberto ergue a taça ao lado do ditador Emílio Médici (Foto: Getty)

O ano era 1970, a ditadura militar, imposta após o golpe de 31 de março de 1964, estava chegando ao seu auge sob o comando do gaúcho Emílio Médici. As medidas econômicas tomadas pelos militares surtiram efeito e o PIB aumentava 9% ao ano, caracterizando o período de crescimento do país que ficou conhecido como “milagre econômico”. Além disso, era época de Copa do Mundo, o único período em que, teoricamente, todos os brasileiros se juntariam em torno de uma só causa: apoiar a seleção nacional na busca pelo título mundial.

É evidente que todas as Copas do Mundo são eventos históricos e marcantes para o esporte, mas aquela seria diferente. Pela primeira vez, o campeonato seria transmitido em cores para a televisão. Além disso, a Fifa estrearia a sua mais nova invenção para a arbitragem: os cartões amarelo e vermelho. Todos estavam eufóricos para ver a Seleção brilhando nos campos mexicanos.

A maré era favorável para que Médici promovesse seu governo. A campanha “Noventa Milhões em Ação” foi lançada e a mídia foi bombardeada com propagandas e canções ufanistas que exaltavam a união do povo brasileiro e o patriotismo. O Regime voltou os olhos da população para a o futebol, pois o sucesso da Seleção Brasileira também seria o sucesso da ditadura. Porém, enquanto o “presidente” incentivava os brasileiros a pintarem as ruas de verde e amarelo, os militares manchavam as cadeias com o sangue dos opositores.

Quem manda na seleção?

A Copa estava cada vez mais próxima e a Seleção estava montada. Pelé, Tostão, Gerson, Piazza e Rivellino faziam parte daquele time que ficou conhecido como o “Esquadrão”, para muitos, o melhor que o Brasil já teve. Todo barco precisa de um capitão, toda orquestra precisa de um maestro e todo time precisa de um técnico. O Brasil tinha o dele, e o seu nome era João Saldanha.

João Saldanha, o verdadeiro técnico do Tri (foto: Reprodução)

Nascido no Rio Grande do Sul, ex-jogador do Botafogo, formado em direito e em jornalismo, Saldanha foi anunciando pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos), como o novo técnico da Seleção Nacional em 1969. Entretanto, algo do passado do novo comandante estranhava a imprensa e fazia com que todos questionassem a sua contratação: João Saldanha era militante do PCB. Além disso, o técnico era amigo pessoal de Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional e um dos líderes da luta armada contra a ditadura. O guerrilheiro havia sido assassinado naquele ano pela ditadura militar.

Como aquele regime de extrema direita permitiu que um comunista comandasse o maior símbolo nacional da época? Segundo o presidente da CBD na época, João Havelange, a justificativa era: como a seleção de 66 havia sido duramente criticada pelos jornalistas, a Confederação acreditava que colocando um representante da imprensa no comando do time, ela amenizaria a reprovação da mídia. Saldanha, que havia trabalhado na Placar e que se destacara no Botafogo, era ideal para o cargo.

De qualquer maneira, o técnico fez um trabalho incrível nas eliminatórias para a Copa. A Seleção se classificou para a competição com uma campanha invejável, e o time ganhou o apelido de “As feras do Saldanha”.

A Seleção Brasileira na estreia das eliminatórias contra a Colômbia (Foto: CBF/Divulgação)

Tudo ia bem e o Brasil vinha forte para a Copa do Mundo, mas, 2 semanas antes do início do torneio, houve um desentendimento entre o técnico e o regime militar. Médici queria que Saldanha convocasse Dadá Maravilha, do Atlético Mineiro, para a Copa, mas o treinador não gostava do futebol do atacante.

João Saldanha não gostou nem um pouco da imposição do “presidente”, e logo disparou: “Ele (Médici) convoca os Ministérios. Eu convoco a seleção.” Na mesma semana, às vésperas da Copa, Saldanha foi substituído por Zagallo, que conduziu a Seleção ao Tricampeonato do mundo.

Em entrevista ao Roda Viva em 1987, Saldanha declarou:

“Considero Médici o maior assassino da história do Brasil. Ele nunca tinha visto o Dario (Dadá Maravilhas) jogar. Aquilo foi uma imposição só para forçar a barra. Recusei um convite para jantar com ele em Porto Alegre. Pô, o cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar. Não poderia compactuar com um ser desses”

O Rei serviu o ditador

Mesmo após a conquista do Mundo pela terceira vez, a relação de Médici com a Seleção Brasileira e seus craques não havia acabado. O ditador, após usar a melhor equipe da época como palanque, conseguiu com que o maior jogador de todos os tempos fosse o seu garoto propaganda.

Pelé ergue a Copa do Mundo ao lado de Médici (Foto: Gazeta Press)

Em novembro, quatro meses após a conquista do tri, Pelé foi enviado em missão oficial pelo Governo Médici para a inauguração do Plaza Brasil, em Guadalajara. Os detalhes dessa viagem estavam todos registrados no Acervo Médici, que foi doado pelo filho do ditador ao Instituto Geográfico e Historiográfico Brasileiro em 2004, mas que só foi aberto em 2014.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, e sua ex-esposa, Rosemeri dos Reis Chlobi, receberam os passaportes diplomáticos de nº021.621 e 021.622, que foram entregues pessoalmente por um funcionário do Ministério das Relações Exteriores, que foi até Santos encontrar o astro.

Alguns podem pensar que Pelé foi coagido a se tornar um representante do governo, já que milhares pessoas que se opuseram à ditadura foram cruelmente torturadas, mas não foi bem assim. Um pouco antes da viagem ao México, no dia 21 de outubro de 1970, o Rei foi até uma das sedes do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social, órgão responsável pelos interrogatórios e pelas torturas) em São Paulo, para declarar o seu apoio à Médici, se dispondo a tornar pública a sua luta contra o “comunismo” no Brasil.

Registro da ida de Pelé ao DOPS (Foto: Reprodução)

Entre os dias 2 e 5 de novembro de 1970, Pelé, o maior jogador de todos os tempos, “com imensa satisfação”, esteve em Guadalajara como um embaixador da ditadura.

“Queira Senhor Presidente, aceitar os meus sinceros agradecimentos por ter escolhido êsse humilde brasileiro para tão dignificante missão, e, se aceitei, foi porque me senti suficientemente honrado em representar tanto V. Excia. como a todos os meus queridos irmãos brasileiros” Pelé em carta à Médici

Em 2021, a Netflix lançou um novo documentário sobre a história de Pelé. O longa aborda diversos pontos da carreira do maior jogador de todos, inclusive a relação amigável com a ditadura. No longa, o Rei chega a falar sobre o assunto.

“Se eu disser que não sabia [que existiam torturas], estaria mentindo. Mas não tínhamos certeza das coisas. No futebol não fez diferença nenhuma.

Ainda no Documentário, o astro afirmou que sempre abriu as portas para todos os Governos. De fato, Pelé já se reuniu com diversos representantes de Estado. Além dos ditadores de 1964 a 1985, o Rei se encontrou com todos os presidentes após a redemocratização, com exceção de Bolsonaro, a quem enviou uma camisa autografada do Santos.

Pelé com a camisa enviada à Bolsonaro (Foto retirada do perfil do presidente no Twitter)

O questionamento que fica é se ter uma boa relação com todas essas autoridades seja algo admirável. É impossível colocar ditadores sanguinários e genocidas na mesma prateleira que presidentes eleitos.

Em campo, Pelé é indiscutivelmente o maior ser humano a já ter pisado na Terra. Fora dele, o Rei deixou muito a desejar.

Nossa missão é mostrar ao mundo que esporte é uma manifestação cultural! Para isso, criamos e compartilhamos conteúdos de qualidade, com pesquisas, opiniões e sempre atualizados. Tudo para manter você consciente e por dentro desse universo cheio de histórias e conquistas!

Apoie o jornalismo independente: https://apoia.se/ocontraataque

--

--