A estrategista Paula Navarro

Impedida de treinar homens do Santiago Morning, treinadora avançou até a final da 1ª divisão do futebol feminino chileno e levantou caneco inédito, garantindo vaga na Libertadores 2019

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O Contra-Ataque
6 min readMar 26, 2019

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Por Augusto Oliveira, de Santiago

No pé da cordilheira, a grama verde e sintética — com suas linhas brancas — espera ansiosamente pelo momento mais vívido de seu dia: quando se encontra com a bola. No Complexo Esportivo Cordilheira, na comuna de Peñalolén em Santiago, treina a equipe feminina do Santiago Morning. A primeira a chegar é a supervisora e treinadora Paula Navarro.

Paula Navarro e sua prancheta tática (Foto: La Segunda)

Seu nome circulou muito em dezembro de 2017, quando foi considerada pelo presidente do clube, Miguel Nassur, para assumir o cargo de treinadora da equipe masculina do “Chago”. O feito entraria na história como a primeira mulher a comandar um time profissional de futebol masculino no Chile. Entretanto, declarações de jogadores, do vice-presidente e de parte da imprensa a afastaram do cargo.

“Muitos pretendiam que eu assumisse a equipe e os jogadores não iriam jogar. Assim iríamos perder uns jogos e diriam que é porque sou uma má treinadora. Deve-se pensar em toda decisão, não somente no poder que se pode ter no futebol, porque não preciso disso. É necessário ter a cabeça fria. Com tantos golpes que recebi…São feridas que se tem, desilusionam muito e dão pena. Mas se aprende. Eu aprendi: tem que evitar as armadilhas”, conta Navarro.

Ao fim, Paula se manteve como assistente técnica de Jaime García na equipe masculina e também head coach — coordenadora e supervisora — das categorias do futebol feminino e dos menores.

A ‘profe’, como é chamada no ambiente de trabalho, veste um conjunto esportivo alvinegro, cores do clube santiaguino. Dentro de seu carro estão os mais diversos equipamentos: cones, bolas, coletes, elásticos e por aí vai. Além disso tudo, leva algumas vezes por semana seus dois cachorros, Orion e Hara, para o treinamento.

“Sempre fui amante dos animais. Trazendo-os para o campo pelo menos uma vez por semana se produz outro ambiente. O futebol que jogamos, de alto rendimento, produz muito estresse, além do gerado pela universidade, no ônibus, o medo de ser roubada…Então elas [as jogadoras] chegam para treinar e estão os cachorros para brincar, fazer carinho, jogar bola…Esquecem o resto e entram no treino felizes e prontas para jogar futebol, que sobretudo é um esporte onde a gente se diverte.”

Navarro fez a educação básica em um colégio apenas para mulheres, Corazón de María, na comuna de San Miguel, e o ensino médio no Nuestra Señora del Huerto, en San Joaquín. Sempre praticou muitos esportes mas começou com o futebol apenas aos 24 anos, quando já estava na Universidade Educares, atual Andrés Bello, nos cursos de Educação Física e Treinadora Esportiva.

“Na minha época as mulheres não jogavam tanto futebol porque era mal visto. Assim que quando saí do colégio fui jogar na universidade. Participei de muitas equipes, cheguei a jogar pela Universidad de Chile, mas tudo muito amador. Depois me dediquei a aprender quão difícil é manejar um grupo de pessoas.”

Enquanto estudava, Paula trabalhava na administração de um depósito e também já treinava as equipes com as quais se envolvia, além de ajudar na organização. Em 2007, conseguiu um trabalho um pouco mais “formal” dentro do esporte: treinadora da equipe da Facultad de Arquitectura y Urbanismo da Universidad de Chile. Lá disputou seus primeiros torneios universitários, onde pode construir boas memórias.

“Eu buscava algo mais competitivo, e foi. Com as meninas da FAU, que eram poucas, jogamos uma final contra a Facultad de Economía y Negocios (FEN), que tinha muito dinheiro, muitas jogadoras, e ganhamos a decisão por 4 a 1. A arquibancada estava cheia, foi inesquecível. Todos queriam que nós ganhássemos porque a FEN ganhava sempre e nós éramos poucas e pobres. Foi uma bonita experiência na universidade.”

Paula não conseguiu terminar o curso de Educação Física por problemas econômicos. Mesmo assim se titulou treinadora esportiva com 35 anos — em 2007 — e no ano seguinte conseguiu o diploma de treinadora de futebol, pelo Instituto Nacional del Fútbol (INAF), sendo a única mulher de sua geração.

Além de sua formação nacional, desde 2014 Navarro mantém proximidade com profissionais dos clubes espanhóis: Athletic Bilbao, Barcelona e Real Madrid, onde faz imersões e intercâmbios para aprender novas ferramentas teóricas e práticas.

“Tenho um círculo de amigos por lá. Vou ver o que estão fazendo, que coisas novas surgiram, métodos, estratégias…Planifico meu tempo para aproveitar todos os dias de treinamento dos clubes, participar de reuniões com os corpos técnicos para ver como estão trabalhando. A recepção tem sido boa em todos os clubes, são profissionais muito bons. Enquanto o Athletic Bilbao e o Barcelona sejam mais abertos a dar informação, o Real Madrid é mais reservado”.

A universidade, os títulos, estudos e a experiência no exterior serviram de plataforma para que Paula pudesse desenvolver seu talento como treinadora e conquistar seu espaço no mercado e no mundo futebolístico. Essa conquista começou em 2007, ainda na Universidade, quando conheceu o ex-jogador e treinador argentino Claudio Borghi, que foi responsável por colocá-la a frente do projeto da primeira equipe feminina do Colo-Colo.

“Apresentei o projeto e ele levou à direção do clube, na época presidida por Gabriel Ruiz-Tagle [principal acionista do Blanco y Negro S.A., empresa administradora do club de fútbol Colo-Colo], e o aprovaram. Montei meu corpo técnico e comecei a trabalhar para formar a equipe de futebol feminino do clube. Como já tinha experiência no universitário, conhecia muita gente e muitas meninas foram fazer os testes. Montamos uma equipe poderosa.”

Foto: Paula.cl

Quando Claudio se vai ao Independiente (ARG), Navarro tem problemas com a direção colocolina — que buscava cortar na metade seu salário e de sua comissão — e sai do clube. Poucos dias depois é contactada pelo Santiago Morning, justamente para iniciar outro projeto de uma equipe feminina.

Fundado em 1903, o Santiago Morning iniciou suas categorias femininas — adulta e sub-17 — em 2008 com Navarro para disputar a Primeira Divisão de Futebol Feminino no Chile, torneio inaugural da modalidade pela Asociación Nacional de Fútbol Profesional (ANFP). Paula soma 11 anos de trabalho no clube santiaguino.

“Os treinadores além de lidar com um grupo de pessoas das quais somos dependentes dentro de campo, lidamos com outro cenário, que são os dirigentes. Há pessoas que são tremendos profissionais mas não tiveram a habilidade de se relacionar com os dirigentes, e isso faz com que saiam do mercado. Não é tão fácil ser treinador como se pensa, tem que ver conteúdo, planificar junto com o auxiliar técnico e dedicar-se a observar e corrigir. Isso fazia Mourinho. Isso fez Pep Guardiola. Se dedicar a observar casos individuais, mostrar os lances em vídeo ao jogador. Não se pode estar fazendo tudo. É complexo.”

Depois de seis anos sem chegar numa final da competição, as “microbuseras” foram vice-campeãs duas vezes em 2014 (Abertura e Clausura) e mais duas nas Clausuras de 2016 e 2017. Perdendo todas para o Colo-Colo, cria de Navarro.

Em 2018, o caneco chegou. Depois de se classificar para os playoffs na segunda colocação da tabela geral — atrás justamente das colocolinas — as santiaguinas eliminaram Deportes Temuco nas quartas de final por 3 a 1, Code Iquique nas semifinais (equipe que desbancou Universidad de Chile) novamente por 3 a 1 e, na grande final, superaram as meninas do Palestino, por 3 a 2.

A partida, disputada no Estádio Nacional, contou com golaços de ambas as equipes. As “Chaguitas” saíram na frente mas as meninas do Tino empataram antes do intervalo. Na volta dos vestiários, o gol do desempate só saiu aos 86 minutos e o terceiro tento logo depois. Ainda deu tempo do Palestino diminuir mas já nos acréscimos.

Foto: Agencia Uno

Numa temporada em que as jogadoras levaram nos números de suas camisetas as cores do arco-íris buscando dar visibilidade a causa LGBT, a conquista inédita colocou a modalidade em evidência no clube, que se tornou o primeiro a assinar contratos profissionais com jogadoras, foram sete no total. Representante chilena na Copa Libertadores 2019, as “Chaguitas” também receberão a licença de clubes da FIFA.

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