A partilha da África e seus reflexos no esporte europeu

Maria Tereza
O Contra-Ataque
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4 min readFeb 15, 2018

Por Pedro Kosa e Maria Tereza

Até 1855, o território africano era visto pelos europeus como um mero produtor de escravos, principalmente para os portugueses, que foram protagonistas nas grandes navegações. Conforme o processo de independência das colônias da América foi acontecendo, as potências europeias industrializadas precisaram buscar outros lugares para continuar extraindo recursos que suprissem suas demandas econômicas (mão de obra e mercado consumidor). Esse processo foi o chamado Neocolonialismo, no qual Portugal, Espanha, Alemanha, Itália, Bélgica, Inglaterra e França passaram a controlar países da Ásia e da África.

Um momento crítico e extremamente violento desse período foi a Partilha da África, uma espécie de acordo feito entre as potências para dividir o continente entre elas. A partilha foi oficializada através da Conferência de Berlim, ocorrida entre 1884 e 1885, em que foram determinados os limites dos territórios controlados por cada país. Além do absurdo de terem tomado posse violentamente de um local, como se a região fosse inabitada, os europeus ignoraram o fato de que nestes territórios moravam tribos com costumes completamente diferentes e que, em muitos casos, eram inimigas entre si.

A presença de nações europeias no continente africano durante os séculos XIX e XX deixou cicatrizes permanentes. A relação entre as antigas colônias e metrópoles influencia até hoje a vida social e a política. Atualmente, com o forte fluxo migratório de povos da África e do Oriente Médio para Europa, as marcas criadas no passado se tornam ainda mais evidentes.

Migrantes ilegais na fronteira da Espanha com Marrocos. Foto (arquivo): F. G. Guerrero/EPA

Na França, por exemplo, o segundo maior grupo étnico após os franceses de origem europeia são os árabes provenientes do Magrebe Africano, região que integra Marrocos, Tunísia e Argélia, três países que já pertenceram a França.

Um dos pioneiros na colonização e exploração da África, Portugal, também participa desse fenômeno desde o começo dos anos 90. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística Português, nos últimos 20 anos, mais de 20% dos imigrantes que chegaram ao país vieram de antigas colônias na África: Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau.

No mundo do futebol, a movimentação não é muito diferente. Milhares de jogadores deixam seus países de origem para jogar em clubes e seleções de nações europeias. Importantes jogadores de seleções da Europa nasceram ou têm pais que vieram de ex-colônias na África. É o caso de Zidane, estrela do futebol mundial, que apesar de ter nascido no sul da França, é filho de um casal de argelinos. Éder, autor do gol de Portugal na final da Euro 2016, nasceu em Bissau, capital da Guiné-Bissau, uma das antigas colônias do país.

Éder calou críticas da torcida portuguesa ao fazer o gol do título (Foto/Facebook oficial das Seleções de Portugal)

Segundo José Paulo Florenzano, professor coordenador do curso de Ciências Sociais e do departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mesmo após o processo de descolonização dos países africanos, impulsionados por uma série de movimentos de libertação nacional, verifica-se o fluxo significativo de jogadores africanos para os clubes europeus. “A emancipação política não foi suficiente para alterar a existência de dois polos interligados de forma assimétrica no contexto da globalização do jogo”, afirma o acadêmico.

Existem outras centenas de casos como os descritos anteriormente no futebol europeu. Florenzano, que também é membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB) e do Museu do Futebol, explica que esse processo de imigração de jogadores africanos é antigo e remonta às primeiras décadas do século passado.

“Por exemplo, no dia 4 de dezembro de 1938, a França colocava em campo, numa partida contra a Itália, o jogador marroquino, muçulmano e negro, Larbi Ben Barek. Na Copa do Mundo da Inglaterra, em 1966, Portugal foi destaque com um time formado em grande parte por atletas provenientes da então colônia de Moçambique. E, mais uma vez, a França foi campeã do Mundo em 1998 com uma equipe multiétnica”, completou.

Seleção Francesa de 1938 (Foto/Site oficial da Federação Francesa de Futebol)

Ao mesmo tempo em que ocorre essa mistura de etnias no futebol, há alguns anos têm se fortalecido na Europa muitos movimentos xenofóbicos e nacionalistas que repudiam a entrada de imigrantes africanos e asiáticos no continente. Houve, inclusive, manifestações de intolerância dentro dos estádios. O professor da PUC-SP comenta que essa é uma situação bastante contraditória e usa um caso ocorrido no Milan para exemplificar.

Nos tempos áureos do clube italiano, o time era controlado pelo político e empresário Silvio Berlusconi que, apesar de defender nas disputas eleitorais a implantação de medidas mais rígidas contra a imigração, também era contra a adoção de qualquer limite na utilização de atletas estrangeiros no campeonato italiano.

“Esse exemplo nos permite concluir que, a despeito do endurecimento da legislação europeia para deter o aumento do fluxo migratório, a utilização de jogadores africanos ou extracomunitários dificilmente será afetada, ao menos, de forma significativa.”, conclui.

A história dos países africanos tem muita dor, mas também muitas coisas boas e que precisam ser pontuadas. Não é certo pensar na África como um continente homogêneo e que só é lembrado como um lugar de fome, pobreza e escravidão. É um continente gigantesco formado por pessoas diferentes com histórias individuais.

Infelizmente, para os europeus, a vida dessas pessoas só tem valor se for para servidão. No passado, como escravos; no presente, como jogadores de futebol.

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Maria Tereza
O Contra-Ataque

Jornalista formada pela PUC-SP, são paulina e fã do Adam Sandler.