Ajax, Tottenham e o judaísmo na final da Champions

Como os semifinalistas da Liga sofrem com o antissemitismo e ajudam a entender a complexidade de uma das maiores religiões do mundo

João Abel
O Contra-Ataque
7 min readMay 7, 2019

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O jovem e surpreendente time do Ajax e o organizado e eficiente Tottenham tem mais em comum do que serem simples zebras na semifinal da edição masculina da Champions League 18/19. Quis o destino que a chave rumo à decisão em Madrid, no Wanda Metropolitano, cruzasse os caminhos de duas equipes que ajudam a explicar a essência da questão judaica no futebol. No ano em que o início da Segunda Guerra completa 80 anos, poucas coincidências podem ser mais expressivas que esta.

Raízes judaicas

Por isso vamos voltar ao período pré-guerra, não pra falar de holandeses ou ingleses, mas do austríaco Hakoah. Você provavelmente nunca ouviu falar no clube da cidade de Viena, vencedor do ‘Austriacão’ do longínquo ano de 1925, quando possivelmente nem seus avós eram vivos. O time era uma espécie de seleção judaica e, por alguns anos, foi considerado uma das melhores equipes de futebol do planeta.

O Hakoah não escondia sua identidade: carregava o hebraico no próprio nome (que, em português, quer dizer resistência) e levava o judaísmo em seu uniforme. Era, disparado, o clube mais popular do país à época. Cada vitória do Hakoah era como uma prova de que os tempos de inferioridade dos judeus em atividades físicas tinha chegado ao fim.

Desde 1949, a população judaica de Viena reduziu-se de 200 mil pessoas para cerca de sete mil (dados de 2004). Os remanescentes na capital austríaca, em geral, são imigrantes do extinto bloco soviético e meia dúzia de israelenses que se estabeleceram por lá por motivos de negócios. A maioria, hoje, não tem o menor interesse por futebol, um esporte que consideram ‘sujo, violento e proletário demais’ para sua vida burguesa. Mas há quase um século, a história era diferente, como explica o jornalista Franklin Foer em seu livro How Soccer Explains The World, de 2004:

“[…] Embora a ideia de uma equipe de futebol profissional composta por judeus pareça tão estranha agora, isso só acontece porque pouquíssimas dessas equipes sobreviveram a Hitler. Mas nos anos 1920, os clubes de futebol judeus floresceram por toda a Europa metropolitana: em Budapeste, Berlim, Praga, Innsbruck e Linz. […]”

Décadas depois, todos foram forçados por Adolf Eichmann a carregar a estrela amarela no uniforme.

Em seu auge, o Hakoah, de Viena, fazia excursões pelo mundo a la ‘Manchester United’, com turnês na Ásia e nos Estados Unidos. Levava, pelo futebol, a palavra do sionismo ao mundo. Para preparar as visitas, o clube enviava previamente funcionários encarregados de gerar ‘burburinho’ sobre a Muskeljudentum (teoria do médico e ativista húngaro sobre a ‘modificação dos corpos judaicos, para que eles fossem mais ‘musculosos’ e ‘atléticos’).

Hakoah durante jogo em Nova York, anos 1920

Em Nova York, conseguiram levar 46 mil torcedores (grande parte judeus) ao Polo Grounds. Mas a turnê também trouxe seu ônus: muitos jogadores ficaram vislumbrados com a cidade norte-americana, que não era tão afetada pelo antissemitismo visto na Europa, e a transformaram em sua ‘nova Jerusalém’. Com a imigração em massa, o Hakoah perdeu grandes atletas e foi declinando até atingir a mediocridade. A partir de 1938, com a invasão alemã no território austríaco, o clube teve seus resultados anulados e o estádio caiu nas mãos dos nazistas. Os jogadores entregues às câmaras de gás.

Voltemos a Ajax e Tottenham.

Não é novidade (mesmo que seja triste) que o antissemitismo ainda persista na cultura europeia, como também persistem outros traços de xenofobia contra muçulmanos a africanos, por exemplo. Uma onda radical de direita se espalha por países europeus, como a Hungria, onde o ultranacionalista Viktor Orban é o primeiro-ministro.

É provável que o Tottenham Hotspur, com sede no norte de Londres, seja o time que mais sofre com este tipo de preconceito atualmente. Em 2018, o globoesporte.com indicou o Tottenham (além do próprio Ajax e do Bayern de Munique) como equipes que foram alvos de sons simulando câmaras de gás e cânticos sobre o Holocausto. Claros gestos antissemitas.

Os torcedores do Tottenham referem-se a si mesmos como ‘Yids’ ou ‘Yiddoes’. Um termo pejorativo usado por fascistas ingleses que apoiavam o extermínio judeu na década de 1930. Os spurs tomaram para si a alcunha e se tratam assim com muito orgulho. Mais ou menos (guardadas as proporções) o que fez a torcida do Palmeiras ao adotar o porco, ou a do Flamengo ao trazer o urubu como mascote, e assim por diante.

Embora tenha quase o mesmo número de judeus nas arquibancadas, a torcida do Chelsea compôs uma dessas músicas abomináveis para o rival de North London:

“Hitler vai mandá-los para o gás outra vez

Não podemos segurá-los,

os Yids do Tottenham”

Outra não menos pior:

Ponha no gás um judeu, judeu, judeu,

coloque-o no forno,

cozinhe até o fim.

Por um bom tempo, a estratégia dos fãs do Tottenham era ignorar os cânticos ou tentar mudar de assunto. Mas o momento de transformação da abordagem veio durante uma partida contra o Manchester City, no início dos anos 1980, quando os adversários cantaram: “Nós temos prepúcio, vocês não”. Em vez de ouvir passivamente o ataque, os torcedores dos spurs tiraram a calça coletivamente e balançaram seus membros circuncidados de modo debochado. Uma reação tão engraçada que calou os oponentes.

Por incrível que pareça os hooligans do Tottenham foram os primeiros a tomar a questão judaica para si com orgulho. Um contrassenso, visto que muitos deles estavam associados à extrema-direita. Hoje, as ruas que levam ao novo White Hart Lane se transformaram em uma vitrine para vendedores de camisetas com dizeres como ‘Yid4ever’.

Mas só um clube europeu parece superar os ingleses do Tottenham quando o assunto é identidade judaica: o Ajax, de Amsterdã. O estádio do time fica completamente tomado de bandeiras israelenses e estrelas de Davi vermelhas estão pintadas nas testas de inúmeros torcedores durante os jogos. O Ajax, como fazia lá atrás o Hakoah, estimula essa identidade.

Se você aprecia (ainda que deslocado no tempo) o futebol total de Johan Cruyff, saiba que ele muito tem a ver com a jovem cultura hippie que tomou a cidade de Amsterdã durante os anos 1960, carregada também de uma onda filossemítica, ou seja de um interesse positivo por Israel. Naquela época, a Holanda era uma das nações que mais defendia o Estado judaico. Os holandeses passaram a redescobrir e apreciar sua história de resistência frente à invasão nazista.

Identificar-se com os judeus do Ajax era como ‘se encaixar’ nesse processo holandês de ‘abrandamento’ da culpa do Holocausto. O jornalista inglês David Winner, que escreveu Brilliant Orange: The Neurotic Genius of Dutch Soccer, afirmou que o Ajax estava engajado em um “ato inconsciente de solidariedade pós-Holocausto aos judeus assassinados e desaparecidos”.

É bom ressaltar que, apesar de verdadeira, essa pode ser uma interpretação generosa e muito simpática aos holandeses, que, assim como tantos outros povos europeus, ainda mantém uma forte cultura antissemita. Como se o judeu fosse um indivíduo perigoso e que ameaça o Estado europeu.

Também cabe dizer que a onda de imigração árabe e africana rumo à Europa não trouxe uma ideia multiétnica de nacionalismo à maioria dos europeus, e sim intensificou seu ódio. Se antes judeus e ciganos eram os ‘outsiders’, esse peso agora recai também (e com mais força) sobre senegaleses, chineses, sírios e outros povos.

De qualquer forma, nesta quarta, 8, Ajax e Tottenham fazem seu principal jogo na temporada. Mas, para variar, o futebol diz muito além do que simplesmente vai acontecer nas quatro linhas. Quem passar, leva a bandeira e a identidade do judaísmo à final da Champions League. Em um mundo cheio de intolerância religiosa, num continente de bases cristãs, isso não é pouca coisa.

Este texto é baseado no terceiro capítulo do livro ‘Como o Futebol Explica o Mundo’, do jornalista norte-americano Franklin Foer, batizado de ‘A questão judaica’. A obra traz ainda discussões sobre outros aspectos culturais, sociais e religiosos do futebol. Vale a leitura.

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João Abel
O Contra-Ataque

jornalista, autor de ‘BICHA! homofobia estrutural no futebol’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’