Brasileirão da pandemia

Maria Sofia Aguiar
O Contra-Ataque
Published in
7 min readAug 15, 2020
Arbitragem anuncia para os jogadores do São Paulo, já em campo, a suspensão da partida. (Foto: André Borges/Getty Images)

Por Sofia Aguiar

Futebol quando vivido de verdade é para ser um momento de prazer, comemoração e euforia, e a pergunta que todo torcedor brasileiro devia se fazer é: “nosso país está nesse clima de festa?” Só não encontra a resposta quem não quer: o Brasil é o segundo pior país no combate ao coronavírus. Estamos atrás apenas dos EUA e já somamos mais de 3 milhões de casos e 100 mil mortes. Ainda não há previsões de quando e como essa pandemia irá acabar no país, mas mesmo assim o futebol brasileiro voltou.

Os dados são claros, é completamente lógico e previsível o que está acontecendo desde o início do Brasileirão. Só na primeira rodada, há times que ainda não jogaram e houve até cancelamento da partida a dois minutos do apito inicial. Já são mais de 40 jogadores que se infectaram e é certo que rodadas inteiras serão suspensas por conta da falta de cuidado dos clubes, atletas e federações. Sério que ninguém esperava que isso aconteceria em meio a uma pandemia?

Com isso, O Contra-Ataque lançou um podcast onde discutimos o descaso e a desorganização das federações e do governo em aceitar e apoiar esse retorno do futebol. A convidada da semana, que nos ajudou nessa conversa, foi Mariana Spinelli, jornalista dos canais ESPN.

O que mais tem se usado como justificativa para o retorno do esporte é “a saúde mental dos brasileiros”. Evidentemente, o futebol é um suporte emocional para grande parte da sociedade, mas são tolos os que acreditam nessa “desculpa esfarrapada” de que a Confederação Brasileira de Futebol e o Governo Federal estão preocupados com a saúde psicológica do seu povo.

“O futebol só está voltando por causa da parte financeira dos clubes. Simplesmente por grana. Não tem nenhuma missão de ‘vamos alegrar o povo’. Não existe isso.” afirma, Mariana.

Por conta da paralisação, foram muitos os clubes que sofreram financeiramente. A perda de patrocinadores e investidores somada à ausência das bilheterias e a continuidade do pagamento de salários de jogadores e funcionários, prejudicaram ostensivamente os clubes. Voltar com o futebol era a chance de se recuperar todo o dinheiro perdido. Então não, não caiam nessa de que o futebol voltou para dar alegria ao povo, até porque, se esse fosse mesmo o motivo, as transmissões todas seriam em canais abertos para que todos pudessem assistir, mas pelo contrário, os conflitos pelas transmissões, motivados (sempre) por dinheiro, foram recorrentes nos últimos meses.

“Pegando o exemplo da Europa: se os casos estão controlados, se estão se preocupando com o povo, o governo, que já está completamente organizado fala ‘o futebol vai voltar pelo bem da saúde mental’. Mas quando você transporta isso para o Brasil… sério que alguma pessoa em sã consciência acha que é isso o que tá acontecendo? Como se o governo estivesse ‘muito preocupado com meu povo então vou trazer o futebol’. Se você está preocupado com seu povo, você cuida dele antes de deixar ele morrer.”

Sem aplausos de torcedores, Bayern de Munique comemora o título do Campeonato Alemão (Foto: Reprodução/UOL)

“Comparar com a situação da Europa, é o que deixa mais escancarado. A Europa voltou com o futebol quando as pessoas pararam de morrer, quando as coisas já estavam bem mais controladas. Aí sim o povo precisava de um respiro. E a gente sabe a importância social do futebol nisso.” completa a jornalista.

Agora, com esse retorno do futebol, o que deve-se pensar também é se os jogadores estão cumprindo com os protocolos de saúde. A preocupação não é só com eles que entram em campo, mas sim com suas famílias e todos aqueles que cruzam seus caminhos antes e depois do jogo. Qual a consciência desses jogadores? Será que eles estão saindo das partidas e dos treinos e indo diretamente para suas casas? Após uma grande vitória, será que eles realmente estão evitando as aglomerações e comemorações pós-jogo? Será que os funcionários do clube, como os roupeiros, faxineiros e toda comissão também estão tomando os devidos cuidados?

“Um time contaminado é uma rodada inteira que fica bagunçada. Um time que jogou contra um outro time, provavelmente contaminou esse outro, que vai contaminar o próximo e por aí vai. Vão se suspendendo os jogos… então, a gente corre esse risco de nem saber qual vai ser a ordem de rodadas e se o calendário da CBF vai ser cumprido”.

O futebol é espelho para a sociedade. Se antes de sua volta, o brasileiro já estava pouco se importando em seguir restritamente a quarentena, com a sua volta, o que se transparece para um torcedor é que a situação já está normalizada e ele pode seguir sua vida como ela era antes da pandemia.

Torcedores se aglomeraram no dia da final do Campeonato Paulista entre Palmeiras e Corinthians (Foto: Reprodução/UOL)

“Se o brasileiro não tem medo de sair de casa, mesmo sabendo que pode correr o risco de se infectar e morrer, com a volta do futebol, ele não vai estar nem aí de fazer um churrasco com a galera, ela vai juntar uns dois amigos e ver o Corinthians x Palmeiras, vai pra um sítio e fazer uma festa. O que a gente tá estimulando com a volta do futebol?”

Já que esse esporte voltou e, como confirmou nossa convidada, “já que a gente sabe que não é com a intenção de ajudar o psicológico das pessoas”, os clubes, seus patrocinadores e as emissoras que transmitem os jogos, sabendo da sua influência, deviam conscientizar os espectadores e servir de exemplo sobre o que deve e não deve se fazer nessa pandemia. Parece irrelevante, mas os jogadores entrarem com máscara em campo, usando essa máscara corretamente e se manifestarem a favor dos cuidados de higiene, são de extrema importância para o brasileiro que está lá, assistindo seu futebol sentado no sofá, perceber o quão real e necessário é adquirir esses protocolos de saúde.

Propaganda cerveja durante jogos de futebol na pandemia.

Assim como, por que, no lugar de propagandas de cerveja — que estimulam a aglomeração e agito de pessoas nas ruas, com o slogan “desculpa, vizinhança” — não se coloca uma propaganda criando responsabilidade e consciência sobre a pandemia que estamos vivendo?

“Eu seria a favor da volta do futebol se a gente também estivesse preocupado com a vida da nossa população. Como as duas coisas estão caminhando separadas, aí a gente também tem que analisar as coisas separadamente”, se posiciona Mariana.

Ademais, devemos nos alertar também sobre a volta do futebol brasileiro feminino.

“Eu acho que mais preocupante que a gente falar da volta do campeonato brasileiro masculino é a gente falar da volta do campeonato brasileiro feminino”

Jogadoras do time feminino do São Paulo retornam aos treinos. (Foto Reprodução/Dragões da Real)

Devemos nos questionar se essa modalidade que, hoje menos desprezada do que antes, está recebendo a devida atenção e suporte para suas jogadoras, pois só se fala em testes e cuidados com os homens. “Se tá voltando o futebol masculino, tem que voltar o feminino, mas que seja com as mesmas condições, investimentos e atenção”, ressalta Mari.

O futebol feminino luta diariamente para se manter e desenvolver, mas diferentes dos meninos, as meninas estão acostumadas a viver com essa situação de pandemia.

“O futebol feminino sempre existiu em pandemia e o futebol masculino está vivendo o que futebol feminino sempre viveu”

Os jogadores do masculino estão entendendo o que elas passam. O que é não ter torcida, transmissão e informação.

Bom, está claro que condenamos o retorno do futebol, mas como fazemos quando nosso time do coração se classifica para uma final emocionante? Não podemos assistir, comentar e torcer?

A Mari finalizou respondendo essa pergunta, que é um embate para muitos torcedores que compactuam com nosso posicionamento:

“O futebol voltou. É meu emprego, eu trabalho com isso. E eu gosto de futebol, assim como vocês. Mas isso não impede a gente de criticar. O jogo tá rolando, eu tenho que analisar o campo, mas eu tenho que criticar quando a equipe não quer fazer o teste de Covid, criticar a torcida que vai pra porta de estádio, cobrar os protocolos de saúde dos dirigentes. A gente comenta o jogo, mas também comenta o que tá errado ao redor dele.”

Torçam, comemorem um título, se enraiveçam com uma derrota. Mas nunca deixem de cobrar o que é certo, honesto e humano.

Ouça o programa no Spotify:

Para ouvir na Web:

Confira as dicas culturais do OCA#27:

Mesa: Dora Scobar, Gabre Paes, Guto, Lucas MAO

Convidada: Mariana Spinelli

Edição Final: Giovana Guedes

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