Como a Copa do Mundo de 1978 legitimou uma ditadura militar

O torneio, sediado na Argentina, foi rodeado de polêmicas dentro e fora dos gramados. Para muitos, ele serviu para legitimar a ditadura militar de Rafael Videla.

João Kerr
O Contra-Ataque
8 min readJun 25, 2023

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Por João Kerr

Foto: Reprodução/CBN

Entre os dias 1º e 25 de junho de 1978, ocorreu uma das Copas do Mundo mais polêmicas da história, sediada na Argentina.

Apesar de ser pressionada a mudar a sede da Copa por conta da crise política na Argentina, a FIFA optou por manter o país-sede, legitimando o governo ditatorial de Jorge Rafael Videla.

Os Hermanos se aproveitaram do fator casa e sagraram campeões de forma muito polêmica, com erros de arbitragem e uma suposta “mala-branca” em partida contra o Peru.

Argentina 6x0 Peru na Copa do Mundo de 1978 (Foto: Reprodução / Internet)

O desafio de sediar a Copa

Em 1970, a FIFA definiu que a Argentina seria o país-sede da Copa do Mundo de 1978. Durante os oito anos que antecederam o torneio, a decisão foi questionada diversas vezes, por conta das crises política, social e econômica que assombravam o país.

De acordo com Livia Gonçalves Magalhães em “Com a taça nas mãos” (2014), outro fator que preocupava era a infraestrutura do país. Essa questão fica clara na declaração emitida pela entidade em 1974, após a Copa do Mundo realizada na Alemanha:

“[…] O estado atual da infraestrutura, bem como dos locais de competição e de comunicações, não permitiria uma realização satisfatória da Copa do Mundo. Com exceção de dois estádios em Buenos Aires, River Plate e Vélez Sarsfield, nenhum outro estádio vistoriado e visitado […] poderia ser considerado, em seu estado atual, para os jogos da competição final. Em relação à infra-estrutura de telecomunicações, deve ser estabelecida e finalizada para satisfazer as exigências mínimas. Nós desejamos repetir: os planos realmente existem, mas devem ser realizados sem demoras para que tudo esteja pronto em data a ser determinada e para que os estádios estejam em conformidade com as condições, fixadas pela AFA.”

— Declaração Geral a partir da visita em 1971

Para garantir que a Argentina sediaria a Copa, o então presidente Juan Domingo Perón criou, em 1974, a “Comissão de Apoio ao Mundial”, chefiada pelo então Ministro do Bem-estar Social, José Lopes Rega, conhecido como “El Bruxo”. Segundo o Relatório AFA 1974, no Arquivo Institucional da FIFA, os principais integrantes do grupo eram Dr. David Lorenzo Bracuto (presidente), Dr. Santiago Leyden (vice-presidente), Paukino Nimbro, (secretário geral), Oscar Ganete Blasco (chefe de imprensa) e Osvaldo Sanchez (coordenador de imprensa).

Mas vésperas do mundial, a revista Humor Registrado utiliza uma figura satírica para “driblar” a censura. “O mundial ocorrerá custe o que custar”, diz o personagem.

No entanto, a comissão não foi suficiente para impedir a pressão de diversos países, como o Brasil, sobre a FIFA para alterar a sede da Copa. Além dos problemas de infraestrutura, o que mais pesava nessas manifestações era o cenário político caótico na Argentina.

Cenário político

5 anos antes da Copa, os argentinos viram a renúncia do presidente Héctor Cámpora e seu vice Vicente Solano Lima, convocando novas eleições. A eleição foi vencida pelo casal Juan Domingo Perón e sua esposa Isabel Martínez de Perón, conhecida como Isabelita.

Em junho do ano seguinte (1974), Juan Perón faleceu, tornando Isabelita a nova presidente. Ela não possuía experiência política e não tinha preparo para assumir a presidência do país, principalmente em uma situação política extremamente turbulenta como a que a Argentina vivia.

Em 1975, José Lopes Rega, “El Bruxo” aplica um golpe e assume a secretaria da presidência, sendo responsável pelas principais decisões do poder executivo do país e, basicamente, se tornando o presidente. Como já mencionado, ele seria também o maior responsável pela organização da Copa do Mundo em 1978.

José López Rega, conhecido como “El Brujo” (Foto: Reprodução)

O governo de Isabelita e Rega ia extremamente mal, tanto em questões econômicas quanto sociais. A inflação no país chegou a 283% ao ano, fazendo com que Isabelita se afastasse do cargo.

Mesmo desgastados após terem governado a Argentina por 8 anos turbulentos e entregado o país em crise em 1973, os militares se aproveitaram da extrema fraqueza do governo de Isabelita e facilmente assumiram o poder através de golpe em 1976. Faltando 2 anos para a Copa, Jorge Rafael Videla assume a presidência do país.

Jorge Rafael Videla (Foto: Getty Images)

Com isso, a pena de morte foi restituída na constituição argentina e a tortura voltou a ser prática comum. A Tríplice A, esquadrão de morte da extrema direita argentina, travava uma “Guerra Suja” contra os Montoneros, apoiadores do Peronismo. Durante o período dessa guerra, que os militares insistiam em chamar de “Guerra santa”,

○ Comandante dos Montoneros namorava com a melhor amiga da filha do chefe da polícia da Argentina. A menina colocou uma bomba debaixo do colchão do comandante.

○ Presidente da câmara do Uruguai tinha fugido para a Argentina por conta do golpe militar no país. Por ser ligado à esquerda uruguaia, seus filhos foram sequestrados e ele e sua esposa foram assassinados.

○ 1 argentino morria a cada 4h por conflitos políticos

Cidadão argentinos vão às ruas para protestar contra o desaparecimento de crianças durante a Guerra Suja. (Foto: Reprodução)

Em agosto de 1976, o diretor de organização da Copa do Mundo foi assassinado. Por conta desse cenário político conturbado, o GP de Fórmula 1 que seria na Argentina naquele ano foi cancelado.

Na França, foi criado o COBA: Comité d’organization pour le boycotte a la coupe du monde em Argentine. O comitê afirmava que concordar com a realização da Copa do Mundo na Argentina era concordar que o jogo e a tortura podem conviver. A 800m do Monumental de Nuñez, uma das sedes da Copa, ficava o centro de tortura do governo militar, na Escola de Mecânica da Marinha. De lá, era possível até ouvir o som do estádio em jogos.

A logo da Copa do Mundo era utilizada pela COBA para denunciar a existência de campos de concentração na Argentina. (Foto: Reprodução)

No Brasil, o Almirante Heleno Nunes, presidente da CDB (atual CBF) tentou se aproveitar do cenário catastrófico da Argentina e trazer a Copa para o Brasil, através de uma carta aberta. Nela, Nunes dizia que, caso fosse oferecido, ele aceitaria receber a Copa no Brasil e que nós tínhamos a estrutura (após o “milagre econômico”, muitos estádios, estradas e outras obras públicas eram realizados), comunicações (sistema de comunicações muito avançado) e tudo que era necessário para sediar uma Copa do Mundo de sucesso.

Outro argumento utilizado por Heleno Nunes era o “direito sul-americano” — Havia um acordo entre a Conmebol e a UEFA de que as Copas aconteceriam de forma intercalada entre Europa e América do Sul. Em 78, era a vez da América.

João Havelange, ex-presidente da CBD e presidente da FIFA à época, tinha o poder para fazer isso, mas não quis. Ele considerou que seria uma atitude muito tendenciosa, apenas por ser brasileiro, e que poderia queimar seu mandato como presidente da FIFA.

A Copa será na Argentina. Caso eles não possam, vou convocar uma reunião junto à FIFA para mudarmos o regulamento e levar essa Copa para a Europa”, afirmou Havelange.

Assim, a FIFA acabou permitindo que a Copa ocorresse na Argentina, legitimando o regime militar.

Campeão na edição anterior do torneio, o lateral-esquerdo Paul Breitney, jogador da Alemanha, publicou um manifesto contra a Copa e não foi ao campeonato, apesar da convocação. Porém, poucos jogadores aderiram ao movimento.

Paul Breitney (Reprodução/Ludopédio)

A torcida Argentina foi “comportada” e politicamente calada durante a Copa. A seleção alviceleste se aproveitou da vantagem oferecida pelo “fator casa” e conquistou seu primeiro título de Copa do Mundo de forma muito polêmica.

O campeonato

Apesar das polêmicas e do cenário conturbado, a Argentina garantiu seu direito de sediar a Copa de 1978. Foram cinco cidades-sede: Buenos Aires, Cordoba, Rosario, Mar del Plata e Mendoza, sendo que Buenos Aires recebeu jogos em dois estádios (José Amalfitani e Monumental de Nuñez).

Três estádios foram construídos especialmente para a Copa: Olimpico (Cordoba), José Maria Minella (Mar del Plata) e Ciudad de Mendoza.

Estadio Olímpico de Córdoba, hoje chamado de Mario Kempes (Foto: Reprodução)

Essa foi a última edição da Copa com apenas 16 seleções. Em 1982, o torneio passou a contar com 24 seleções.

A campanha da seleção argentina não foi brilhante e contou com algumas polêmicas.

Após ter uma campanha mediana na primeira fase, a Argentina chegou à última partida da segunda fase precisando vencer o Peru por 4 gols de diferenças. Caso contrário, o Brasil avançaria e os Hermanos seriam eliminados. A partida terminou com a vitória argentina por 6 a 0, com uma atuação extremamente abaixo do aceitável do Peru e seguidas falhas do goleiro peruano.

A partida levantou inúmeras suspeitas de acordo financeiro entre as equipes, já que havia uma pressão muito grande para que a Argentina vencesse o torneio em casa e deixasse para trás o Brasil, seu maior rival. De qualquer forma, a seleção de Mario Kempes e companhia avançou e sagrou-se campeã após vencer a Holanda por 3 a 1 na prorrogação da grande final.

O capitão Daniel Passarella ergue a taça do primeiro título mundial pela Argentina (Foto: Carlo Fumagalli/AP)

No documentário “Memórias do Chumbo — O Futebol nos tempos do Condor”, o atacante René Houseman, campeão com a Argentina, disse que não se considera um “campeão da ditadura” e que ele e outros jogadores estavam alienados ao que realmente acontecia no país.

“Não somos campeões da ditadura. Eu me sinto campeão do mundo, joguei pela Argentina, não joguei para os milicos. Se eu soubesse o que acontecia no país não teria jogado na Copa, teria me retirado”, afirmou Houseman.

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