De palco da Copa do Mundo a prisão política

Quando o Estádio Nacional do Chile foi usado como prisão política na ditadura de Augusto Pinochet

Matheus Braga
O Contra-Ataque
5 min readNov 25, 2021

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Estádio Nacional de Santiago, no Chile.

Um texto por Matheus Braga

Os estádios de futebol possuem um grande papel cultural na nossa sociedade. Cada cidade que visito, previamente trato de pesquisar os estádios que ali existem, desde os grandes clubes aos modestos de bairro, que possuem grandes histórias entre os moradores e torcedores que o apoiam.

Mas desta vez você vai conhecer uma história que marcou um tempo sombrio para o povo chileno. Mais precisamente na ditadura de Augusto Pinochet, que fez do folclórico Estádio Nacional do Chile um lugar de execuções e torturas.

O Estádio Nacional Julio Martínes Prádanos, ou como é conhecido Estádio Nacional do Chile, começou a ser construído em 1937 e 1938 e foi inaugurado no dia 3 de dezembro de 1938. E com presença do Brasil no dia. Isso porque o jogo de abertura do estádio foi entre o campeão chileno do ano inteiror, Colo-Colo, e São Cristóvão, time do Rio de Janeiro. Os chilenos venceram o time brasileiro por 6 a 3.

O jogo de abertura foi uma grande festa para o povo chileno. Mas também levantou muito questionamento sobre a construção de um estádio com capacidade para 70 mil pessoas, sendo que o futebol do país não gerava grandes públicos, além de no cenário internacional os clubes chilenos não possuirem uma grande relevância.

Mas em 1973 o estádio foi palco de um grande momento para o futebol chileno: o Colo-Colo chegou a final contra o Independiente da Argentina, perdendo por 2 a 1 na prorrogação. Essa derrota não seria tão dolorosa quanto o que aconteceria no local meses depois.

Isso porque menos de quatro meses após a final, o golpe de estado no Chile era feito sobre o comando de Augusto Pinochet. Com uma grande perseguição política no país, os quarteis e cadeias estavam lotados, da mesma forma que grandes campos de concentração. Então chegou o momento que o palco de grandes jogos se tornaria prisão política.

Os portões que receberam diversos torcedores no passado começaram a ser ocupados por militares que utilizavam o local para receber prisioneiros e cadastrar dados como nome, idade, profissão, endereço e nome dos pais. Os vestiários que receberam grandes craques na Copa do Mundo de 1962 passaram a ocupar até 120 prisioneiros que se espremiam para tentar respirar no local. Além disso, os alto falantes do estádio eram usados para anunciar nome dos presos que seriam interrogados e torturados pelos soldados.

Vale lembrar que isso tudo ocorria pouco tempo após o golpe. A maioria da população não imaginava tudo que acontecia no Estádio Nacional já que a comunicação era perigosa e os jornais estavam sobre forte censura. Relatos de sobreviventes afirmam que, para abafar o barulho dos tiros, soldados ligavam os ventiladores.

Soldado de Pinochet vigia prisioneiros políticos encarcerados na arquibancada do estádio (Foto: Reuters)

Além de todo terror, os presos conviviam com bastante frio. Além dos vestiários, os corredores que davam acesso ao gramado também eram ocupados por prisioneiros. A tática utilizada por eles era de ficarem aglomerados, já que os soldados racionavam cobertores como forma de punição. O frio tinha poder de assustar mais que a fome, que era rotineira já que os presos recebiam apenas um pão e uma caneca de café por dia, quando recebiam.

Oficialmente, morreram 40 pessoas. Mas a estimativa é de que cerca de 400 pessoas foram assassinadas no estádio. Difícil de acreditar mas, meses depois, o estádio receberia uma partida entre Chile e União Soviética, pela repescagem para a Copa do Mundo de 1974. Devido a isso, os jardineiros foram obrigados a voltar para o trabalho, limpando todo o sangue que tomava conta do gramado do estádio, mas o jogo não aconteceu. A União Soviética se recusou a jogar alegando que o local teria sido uma prisão onde várias pessoas teriam sido executadas e o Chile acabou vencendo por WO. Esses jardineiros tiveram um papel fundamental nesse período, já que por solidariedade tentavam levar notícias as famílias que buscavam por respostas na porta do estádio.

Estima-se que cerca de 400 mil pessoas passaram pela prisão no Estádio Nacional do Chile. A maioria presa apenas por opinião política diferente da imposta pelo regime de Pinochet, já que apenas um terço dos presos tinham ligação com partidos de esquerda.

A memória dos horrores da ditadura segue preservada no interior do estádio chileno.

No final de 1973, os presos sobreviventes começaram a deixar o estádio. Muitos deles para o deserto do Norte Grande. Apenas homens foram transferidos para um campo isolado no meio do deserto do Atacama, chamado Chacapuco. Segundo relatos, o local era impossível de se escapar, já que os presos viviam sobre forte esquema de vigilância, além do fato da cidade mais próxima ficar a 100km de distância.

“Um povo sem memória é um povo sem futuro” foi a frase escolhida por um grupo de ex prisioneiros para estampar em uma parte do estádio dedicada as memórias daqueles que passaram por ali. O portão 8 foi o local escolhido, já que segundo os presos era de onde poderiam dar a sorte de ver um dos familiares que se aglomeravam para tentar receber alguma notícia.

O estádio segue valorizando a memória da ditadura, esta pequena parte do Nacional continua com as arquibancadas de madeira, mesmo sendo pintada algumas vezes, as paredes ainda possuem relevos feitos por prisioneiros inquietos. O local serve como um canto de orações para aqueles que passaram por ali, com uma iluminação sutil.

Como os próprios chilenos afirmam, tudo que aconteceu não será esquecido. Portanto, manter o estádio em pé serve como forma de homenagear todos que passaram e sofreram naquele local, que segue vivo e é tido como um símbolo de resistência da democracia do Chile!

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Matheus Braga
O Contra-Ataque

Mineiro, jornalista e apaixonado pelo futebol inglês.