Entre a fé e a performance esportiva: atletas muçulmanos se adaptam ao Ramadã

Desportistas buscam mitigar efeitos do jejum com dietas balanceadas ou abdicando da prática religiosa

O Contra-Ataque
O Contra-Ataque
5 min readApr 23, 2020

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Jogadores argelinos agradecem a Deus após conquistarem a Copa Africana de Nações 2019. Foto: Suhaib Salem/Reuters

Por Gabriel Tomé Tavares e Sara de Oliveira

A Copa do Mundo de 2018 foi a mais muçulmana da história, com mais de 100 atletas praticantes da fé espalhados por seleções de países majoritariamente islâmicos, como Arábia Saudita e Irã.

A edição do Mundial ocorrida na Rússia, se iniciou no dia 14 de junho, o último dia do Ramadã, o maior ato de obediência religiosa do mundo e o evento mais importante da comunidade muçulmana, daquele ano.

De acordo com a tradição islâmica, foi neste período do calendário lunar que Deus revelou a Maomé, o profeta do islamismo, as palavras do Alcorão, o livro sagrado da religião.

Durante esses trintas dias os fiéis devem praticar o jejum, um dos cinco pilares dessa fé, se abstendo do consumo de alimentos e bebidas, de fumar e de praticar relações sexuais, do nascer ao pôr do sol. Crianças, idosos, doentes e mulheres que estejam grávidas, em período de amamentação ou menstrual, não participam do jejum.

O jogo de abertura do Mundial de 2018 envolveu justamente a seleção de um país islâmico: a Arábia Saudita, que enfrentou a Rússia. A partida em questão terminou com o estrondoso placar de 5 a 0 para os anfitriões.

Rapidamente, a questão do jejum dos atletas e como isso pode ter prejudicado a seleção árabe virou pauta no mundo esportivo — ainda mais porque, nos jogos seguintes, a seleção obteve um melhor desempenho: derrota por apenas 1 a 0 para o Uruguai, e vitória por 2 a 1 contra o Egito, outra seleção de um país islâmico.

Duas refeições são feitas, diariamente, durante o período: o suhoor, antes do sol nascer, e o iftar, quando ele se põe. O suhoor consiste em uma refeição saudável e poderosa, para que se possa aguentar o longo período de jejum. Já o iftar, é uma refeição na qual é comum o consumo de gordura, frituras e doces.

A primeira refeição após o período de jejum de trinta dias, é um momento de confraternização, em que famílias se reúnem para comer juntas. Ela ocorre durante o Eid-al-Fitr (“festa do desjejum”, em tradução para o português).

Para Abbey Alabi, nigeriano radicado no Brasil, que é muçulmano e professor de inglês em São Paulo, o Ramadã é uma questão de fé individual, e um período para estar mais próximo de Deus.

“Jejuar é muito gostoso, é muito bom! Talvez quem nunca fez não consiga entender”, afirma. “É uma coisa que todo muçulmano devoto não consegue ficar sem, é mais um pouco de fé. Você vai querer fazer de qualquer jeito”, explica Alabi.

Logo em sua estreia no Mundial, Arábia Saudita foi goleada por 5 a 0 pela anfitriã Rússia. Foto: Carl Recine/Reuters

Mas e os atletas muçulmanos? Como podem alinhar o jejum e o alto desempenho esportivo?

Em entrevista ao Contraponto, o professor titular de Nutrição da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP), e colunista da Revista Saúde, Antonio Lancha Jr., diz que um atleta sempre terá uma performance pior quando está de jejum, em relação ao período em que está melhor alimentado.

“Ele pode ter um desempenho comparável com os demais jogadores que pode ser muito bom, excelente, até acima da média. Porém, comparado o rendimento dele próprio contra ele mesmo [quando se está de jejum e quando se está bem alimentado], o desempenho vai ser prejudicado”, diz.

Atletas que optam por fazer o jejum, mesmo sabendo dos riscos, traçam estratégias para diminuí-los, como fizeram Enes Kanter, jogador de basquete turco que joga pelo Portland Trail Blazers, time da NBA, e Zhara Lari, patinadora artística emiradense. Ambos afirmam fazer dietas antes do período do Ramadã para que o corpo se acostume.

“Eu jejuo, durante a temporada, uma ou duas vezes por semana, para deixar meu corpo preparado para o Ramadã. Estou acostumado a isso. Basquete é um esporte em que você lida mais com a mente do que com o corpo”, afirmou Enes Kanter, para o SporTV. “Uma vez que estou focado no jogo, com a mente limpa, eu não me distraio pensando se estou me hidratando ou descansando”.

“Ser uma atleta definitivamente mudou a maneira de me alimentar em geral. Eu sou muito consciente do que entra na minha boca e tento ser o mais saudável possível. O melhor conselho que eu posso dar é manter suas refeições balanceadas e saudáveis, ficar hidratado o quanto puder”, disse Zhara Lari para a revista árabe Harper Bazaar Arabia.

Antonio Lancha Jr. aponta que existem diversas opções para atletas muçulmanos se manterem em alto nível durante o Ramadã.

“Uma das formas de diminuir o risco seria fazer a atividade logo no início do período de jejum, então o atleta se alimenta durante a noite e faz a atividade logo cedo, ou ele faz mais próximo do fim do período de jejum, porque assim ele acaba de fazer o treino em jejum e se alimenta em sequência conseguindo se recuperar”, diz.

Segundo o Alcorão, existem grupos que estariam liberados de fazer o jejum, entre eles os viajantes — por isso, alguns acreditam que, em casos como o dos atletas que foram disputar a Copa na Rússia, eles não precisavam jejuar naquele período e poderiam repor posteriormente.

Seguir ou não o jejum no Ramadã foi uma pedra no sapato — chuteira, se preferir — de Mohamed Salah, jogador do Liverpool e da seleção egípcia. Durante a final da UEFA Champions League 2017/18, contra o Real Madrid, logo no início do jogo, o atacante sofreu uma lesão no ombro.

Alguns muçulmanos apontaram isso como um “castigo divino”, já que a final aconteceu no período do Ramadã e o jogador resolveu postergar o jejum, enquanto seu companheiro de time que comunga da mesma fé, o senegalês Sadio Mané, seguiu jejuando.

Abbey diz que interromper o jejum ou escolher postergá-lo não faz da pessoa menos muçulmana. “Não tem obrigação em fazer o jejum, não há punição. É uma coisa voluntária. Se você é muçulmano, você é orientado a fazer. Quem faz jejum, faz por si mesmo. E ninguém deve julgar”, diz.

Esta matéria foi publicada inicialmente no Contraponto (n° 124), o jornal laboratorial do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Você pode acessar o periódico completo através deste link.

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