Entrevista exclusiva com a árbitra assistente, Neuza Back, sobre desafios e conquistas da arbitragem feminina

Como foi e como é a trajetória de mulheres que querem seu espaço na arbitragem

Maria Sofia Aguiar
O Contra-Ataque
7 min readNov 10, 2020

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Neuza Back, assistente de arbitragem [Foto: Ailton Cruz]

Por Sofia Aguiar

"Existem homens que não debatem jogadas e lances conosco. Pra eles, a gente não sabe de futebol. Eles têm esse pensamento de que a gente não sabe nada”.

Essa fala é de Neuza Back, uma das mais reconhecidas e brilhantes assistentes de arbitragem do Brasil.

Em entrevista exclusiva ao O Contra-Ataque, Back contou sobre sua trajetória, desafios e vitórias. Mas, antes disso, cabe mostrar um pouco sobre algumas das mulheres que entraram nessa luta para, enfim, conseguirem ocupar seu espaço (ainda pequeno) na arbitragem feminina e qual é a visão que a sociedade tem dessa conquista.

As 6 primeiras respostas do google objetificam as profissionais de arbitragem. As 2 seguintes são definições do dicionário e só a 9ª é uma notícia séria.

Quando se pesquisa no Google por reportagens a respeito de árbitras, um dos primeiros sites de notícias que se encontra, estampa o seguinte título: “Árbitras e bandeirinhas que arrasam no estádio”. Bom, tenhamos esperanças. O site pode estar falando do profissionalismo delas…

Obviamente, isso seria em um mundo distante do de hoje, pois, logo que entramos no primeiro parágrafo da matéria, um show de machismo nos é apresentado: “Essas árbitras e bandeirinhas, além de serem profissionais, dão um show de beleza e sensualidade. Algumas delas são modelos, e outras foram consideradas uma das mulheres mais sexy da profissão”.

O site faz uma lista das árbitras mais bonitas (considerando o padrão estético que a sociedade impõe), pois, como os próprios redatores relataram, elas serem competentes e profissionais não é o que se destaca. Importante ressaltar que a matéria é de 2020. E não é a única.

Print da manchete “Árbitras e bandeirinhas que arrasam nos estádios” [Foto: Reprodução ojilo.com]

Se para as mulheres já é difícil serem aceitas dentro de campo jogando, sendo autoridade a dificuldade piora. Um árbitro é a autoridade máxima no jogo. Todas as decisões e andamento da partida são de sua responsabilidade e de seus assistentes. Os argumentos que comumente se vê, daqueles que são contra as mulheres exercerem essa função, estão relacionados à ideia de que a mulher não é considerada apta para comandar, liderar, decidir e claro, ter o condicionamento físico que uma equipe de arbitragem necessita.

Um pouco do histórico feminino na arbitragem

Léa Campos — Foto: Reprodução/UOL

Para mostrar o início dessa luta, destaca-se o caso da brasileira Léa Campos, que se tornou a primeira mulher árbitra do Brasil e do mundo reconhecida pela FIFA, no ano de 1971.

Nesse mesmo ano, as mulheres ainda eram proibidas de jogar futebol, portanto, ela também estava impedida de apitar. Para ser autorizada, precisou pedir uma autorização por escrito do então ditador Emílio Médici, durante o regime militar brasileiro (1964–1985).

Com a autorização concedida, foi protagonista de uma trajetória feminina na arbitragem brasileira, uma figura importante no que confere a participação da mulher nesse meio. Léa quebrou barreiras e não desistiu frente a tantos obstáculos colocados a sua atuação. Derrubou preconceitos e estereótipos de que não teria condições físicas para atuar, e recebeu o seu reconhecimento. Ela abriu caminho e, a partir dela, outras mulheres também puderam buscar seu espaço na arbitragem.

No ano de 2003, ocorreu um fato considerado importante para a arbitragem feminina, que foi a participação do trio de árbitras composto por Silvia Regina de Oliveira, Ana Paula da Silva Oliveira e Aline Lambert, as quais atuaram pela primeira vez, na história, em uma partida de futebol masculino na série A do Brasileirão.

Ana Paula Oliveira, Silvia Regina Oliveira e Aline Lambert formaram o primeiro trio feminino a atuar na série A do Brasileiro, em 2003 — Foto: Reprodução/Apito Nacional

Nos jornais, a atuação do trio foi motivo de ridicularização e piadas sobre mulheres arbitrarem um “jogo para homens”.

A beleza no futebol: um trio feminino vai abrilhantar o jogo Atlético-MG X Criciúma, hoje, no Independência. É bom, afinal, veremos uma plasticidade diferente da habitual, onde a lisura das pernas femininas se mistura as cabeludas e musculosas coxas. (Diário Catarinense, 01/11/03).

O melhor da partida não foi Rico nem Ricardinho e sim o trio de arbitragem feminino. (O Estado de São Paulo, 30/06/03).

Para ajudar, além da concentração no jogo, em primeiro lugar, elas não dispensam a nécessaire: batom, esmalte, brinco, perfume e espelho. (Folha de São Paulo, 29/06/03).

Edina Alves é outro fenômeno da arbitragem feminina. Em 2007, virou assistente do quadro da CBF e, em 2013, foi indicada para atuar no Campeonato Brasileiro masculino, trabalhando em todas as séries.

Neuza, Edina e Tatiana — Foto: Reprodução/CBF

Ao lado de Neuza Back e Tatiana Sacilotti, Edina formou o primeiro trio de mulheres a representar a arbitragem brasileira em um Mundial feminino. Elas trabalharam em quatro jogos da Copa do Mundo da França.

Não é o suficiente fazer uma lista, contando nos dedos, quantas são as árbitras que fazem e fizeram história. Enquanto que, com os homens, teriam que ser escritas páginas e páginas para dissertar sobre eles. São muitos.

Até ano passado, existiam apenas 17 árbitras credenciadas no Brasil. Oito delas possuíam índice para apitar a primeira divisão do futebol brasileiro; homens eram 42.

Neuza Back

Com o auxílio e resistência dessas e outras mulheres que não foram citadas, hoje se abrem cada vez mais portas na arbitragem. Elas calam, com sua competência, a parte da sociedade machista que existe no Brasil e no mundo, a qual ainda pensa que lugar de mulher não é em campo, principalmente quando ela é autoridade dentro dele.

Neuza Back é uma dessas mulheres que chegou para mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser sim. E o lugar dela foi na premiação de melhor bandeirinha do campeonato paulista de 2020, a qual concorreu com homens e mulheres. Mas o destaque foi dela. Mais que merecido, mais que representativo.

Neuza Back — Foto:Delmiro Junior

“Foi fenomenal. Eu estava em uma competição onde tinham assistente homens e assistentes mulheres. E o fato de eu ganhar o prêmio, enquanto mulher, não quer dizer que eu seja melhor do que os homens, mas que sim, as mulheres também têm condições de trabalhar nessa área e ter ações de excelência. Isso fortalece o quadro feminino, dá esperança para as meninas que estão vindo.”, declarou ao OCA.

Natural de Santa Catarina, a assistente nos conta que o interesse pela arbitragem veio a partir do seu irmão, que também trabalhava na área. Ela chegava a percorrer 600 km do seu municipío até a confederação onde eram realizados os cursos para árbitros.

A caminhada foi longa. E mesmo com tanto estudo e tantas abdicações que precisaram ser feitas, ainda assim, em pleno 2020, apenas pelo fato de ser mulher, a credibilidade de seu trabalho precisa ser provada dentro de campo entre árbitros e comissão técnica. Um machismo um tanto quanto velado, porém persistente.

“Você, primeiro, precisa provar que tem capacidade e qualidade, pra que depois eles confiem no seu trabalho. Um olhar de desconfiança, às vezes uma piada, essas coisas são bem recorrentes. E claro que não podemos generalizar. Temos pessoas no meio que são, sim, muito respeitosas, que nos tratam com muito profissionalismo”.

Se fora de campo, quando se é mulher, um errinho se torna motivo para piada, demissões e todo tipo de preconceito; dentro de campo, não seria diferente.

Em 2014, a árbitra Fernanda Colombo Uliana marcou um impedimento de forma errada e foi castigada pelo seu erro. Com argumentos pautados na sua imagem corporal, o então diretor do Cruzeiro, Alexandre Mattos, disse:

“Se ela é bonitinha, que vá posar na Playboy” (Alexandre Mattos)

Recentemente, nesse ano, no mês de setembro, o ex-jogador Jairzinho, comentando uma partida entre Vasco e Botafogo, pelo Campeonato Brasileiro, também aderiu a uma fala machista para criticar as decisões de Neuza Back:

“Pô, bota pra lavar roupa”. (Jairzinho)

“O que me deixa triste não é o comentário em si. Uma pessoa não define quem eu sou pelo comentário que ela fez. Isso não afeta diretamente a mim. Era a Neuza que estava ali naquele dia, mas poderia ser a "Maria", a "Joana"… o que me deixa triste é o pensamento que tem por trás disso, de que pelo simples fato de ser de um gênero, isso te limita ou te impossibilita de determinado trabalho”, diz a bandeirinha sobre o comentário de Jairzinho.

Back relata que, em campo, quando há torcedores no estádio, o machismo que aparece é, especialmente, vindo da torcida. Também conta sobre as diferenças em trabalhar em jogos do masculino e do feminino. Ela ressalta em como é raro de vermos brigas generalizadas e agressões nos jogos das meninas e como são muito presentes entre os meninos.

“Isso é uma coisa que o futebol masculino podia olhar pro feminino e ver que é possível proporcionar um bom espetáculo, um bom futebol, sem essa violência dentro e fora do campo”.

Aquelas mulheres que tanto lutaram para conquistar seu espaço na arbitragem, deram um pontapé gigante para que outras continuem essa luta. Essas outras estão abrindo a mente das pessoas e de alguns gestores, enterrando o pensamento de que mulher não serve para o futebol, não serve para arbitrar. O que estão fazendo hoje, pode definir o que vai ser feito amanhã.

“É uma evolução da humanidade. Agradeço por terem essa visão e nos possibilitarem de estar trabalhando nesses jogos”, concluiu Neuza Back.

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