França: entre o favoritismo e a diversidade cultural

Como o futebol e a política mostram o melhor e o pior dos franceses

O Contra-Ataque
O Contra-Ataque
8 min readMay 30, 2018

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Por Pedro Lopes do Val

Pouca gente sabe, mas a história das Copas do Mundo começa com um gol francês. O meia-atacante Lucien Laurent abriu a goleada de 4x1 sobre o México, em 1930 no Uruguai, dando início a uma história que já dura 70 anos (descontados os anos de pausa entre 1942 e 1950, devido à Segunda Guerra Mundial).

De lá pra cá, a França quase sempre contou com times marcantes, como o de 1958, com a chamada ‘Geração de Ouro’ de Just Fontaine e companhia, alcançando o terceiro lugar na Copa do Mundo da Suécia.

Seleção francesa em 1958 (Foto: imortaisdofutebol.com.br)

Já um pouco mais pra frente, na década de 80, capitaneada pelo brilhante Michel Platini, a França saltou aos olhos do mundo como uma das principais potências no futebol com resultados consistentes em Copas do Mundo (4° lugar em 82 e 3° em 86) além de dois títulos expressivos em 84, quando se sagrou campeã da Eurocopa e medalha de ouro nas Olimpíadas de Los Angeles, derrotando o Brasil na final.

Muito além do bom futebol e jogadores habilidosos, o time europeu é diverso também quando se trata de bagagem cultural.

(Foto: Reprodução/Coleka)

Seleção multicultural

A expansão marítima francesa nos tempos de colonização bem como a forte imigração no início do século XX deixaram heranças profundas que marcam até hoje a língua, a cultura futebolística e as sociedades tanto francesa como das colônias, principalmente na África, Caribe e América do Sul.

Outro fator mais recente mostra que a França costuma ser destino primordial de imigrantes também de outras partes da Europa, tanto Polônia, Portugal, Itália, Espanha quanto lugares mais afastados como Rússia, Armênia e até o Oriente Médio, o que contribuiu para enriquecer ainda mais o caldeirão de culturas dos jogadores e da seleção.

Com esse panorama, a França foi uma das primeiras equipes europeias a recrutar jogadores negros. O primeiro foi Raoul Diagne, nascido na Guiana Francesa, tendo jogado pela seleção em 1938, e os primeiros jogadores negros a obterem destaque dentro do time foram Marius Trésor, nascido em Guadalupe, capitão da seleção em 1978; e Jean Tigana, que junto com Alain Giresse, Luis Fernández e Michel Platini, formava ‘Os Três Mosqueteiros’ do meio campo francês nas Copas de 82 e 86.

Como se pode notar, a França sempre contou com jogadores nascidos em outros países ou territórios ultramarinos. Na edição de 2018, 20 dos 23 convocados de Didier Deschamps são ou nascidos em outros territórios, ou descendentes diretos de imigrantes, à exceção de Olivier Giroud, Lucas Hernández e Antoine Griezmann, que possuem avós de outras nacionalidades.

Black, blanc, beur

Durante a Copa de 98 foi cunhado o termo ‘black, blanc, beur’ (preto, branco, árabe), supostamente uma frase para definir a identidade de um time, e consequentemente, de uma nação.

O país embarcou em uma onda ufanista onde todos os grupos étnicos e religiosos pareciam contemplados pela diversidade dos próprios jogadores. O timaço contava com Zidane, Desailly, Thuram, Deschamps, Blanc, Pires, Trezeguet, Karembeu, Makelele, entre outros, dando uma dimensão universalista à equipe.

A ideia de ‘black, blanc, beur’ consistia em mostrar através do futebol, como a sociedade francesa se orgulhava em ser portadora de tamanha diversidade religiosa, étnica e cultural dentro de seu país. O governo francês se apropriou do momento amistoso e deu ainda mais voz a um conceito no qual a miscigenação era elemento central de unificação da nação. O então presidente Jacques Chirac, que não gostava de esportes e sequer sabia nomear os escalados do time, viu na seleção francesa uma oportunidade sem igual para capitalizar em cima da questão sócio-identitária e despontar como favorito à reeleição.

Zidane, Desailly e Blanc: quando o multiculturalismo francês ergueu o mundial

Vitória francesa em campo, vitória de Chirac nas urnas, mas o que se viu depois do período de frenesi, e ainda se vê na sociedade francesa é que essa multiplicidade parece incomodar uma parcela da população, principalmente aqueles que se consideram ‘franceses genuínos’.

Mais do que um título inédito em casa, o que aconteceu em 98 serviu para acender um debate sobre como os cidadãos franceses se vêem e como vêem seus compatriotas, mesmo que sua religião não seja a mesma e mesmo que sua pele não seja a mesma. A conquista deu protagonismo aos campeões negros, brancos, árabes, bascos, portugueses, caribenhos, muçulmanos e católicos franceses que constituíam a seleção.

Os anos que se seguiram após a conquista da Copa foram os mais importantes para demonstrar que a ideia de black, blanc, beur se mostrava na verdade um mito, e contribuiu para que o time fosse ator principal na tragédia de 2002, quando o time foi eliminado na primeira fase na Copa da Coreia e Japão, sem uma vitória sequer.

Anos dourados

Em 1998, o time francês vinha embalado depois de uma boa campanha na Euro de 96, quando chegou às semifinais e consolidou a base do time para a Copa do Mundo. A campanha no mundial foi histórica: partidas memoráveis contra Paraguai e Croácia levaram o time à final, coroada com um ressonante 3x0 diante do Brasil de Ronaldo e Rivaldo, e impulsionou uma onda positiva dentro do país, com alguns dizeres como “Zidane presidente!” ganhando destaque entre os torcedores, embora socialmente, as coisas não fossem exatamente igualitárias.

Logo após a conquista, o time foi alçado à condição de celebridade, e o presidente francês aparecia constantemente junto aos jogadores. Na Eurocopa de 2000, Espanha, Portugal e Itália ficaram pelo caminho dos ‘bleus’, que tiveram Zinedine Zidane nomeado melhor jogador da competição. Em 2001, mais um título, dessa vez, na Copa das Confederações, outra vitória diante do ‘Brasilzão’ da massa, nas semifinais. Porém, após a final contra o Japão, o time francês daria início a um período de constantes oscilações. E justamente nesse interim, começaram a aparecer as primeiras cicatrizes mal cuidadas da sociedade francesa.

Política x Futebol

No dia 8 de setembro de 2001, o primeiro amistoso entre França e Argélia depois da independência argelina, ainda em 1962, terminou antes do tempo regulamentar devido a sucessivas invasões de torcedores da seleção magrebina.

O episódio escancarou como os próprios franceses descendentes de imigrantes e os não-nascidos no país metropolitano não se viam representados diante da disparidade entre suas condições de vida e tratamento social comparada com as classes mais altas (e brancas). Vale lembrar que os cidadãos que nasceram em territórios ultramarinos franceses como a Guiana, Guadalupe, Nova Caledônia, Martinica entre outros, são considerados tão cidadãos e possuem os mesmos direitos em relação aos franceses europeus garantidos pela lei francesa.

E enquanto os conflitos políticos se desenrolavam à revelia da vontade do governo francês, o espetáculo que se formou em torno da seleção fez com que os jogadores franceses chegassem badalados para a disputa da Copa do Mundo, mas logo no primeiro jogo do torneio, contra o Senegal, os africanos mostrariam que alguns pontos precisavam ser acertados, tanto dentro quanto fora de campo. Derrota francesa por 1 a 0 diante dos leões, dando início a uma das piores campanhas da história. A França ainda empataria com Uruguai e perderia para a Dinamarca, deixando o torneio sem marcar um gol sequer.

Youtube/Reprodução

Nos anos seguintes à Copa da Coreia e Japão, a França somou uma série de resultados ruins: foi eliminada pela campeã Grécia na Euro de 2004, e apesar de lograr mais uma final de Copa, quando perdeu para a Itália em 2006, no que seria o último jogo de Zidane com a camisa nacional, saiu na primeira fase da Euro de 2008. Em 2010, dava início a um período de grande turbulência.

Na Copa da África do Sul, o time comandado por Raymond Domenech fez uma greve em pleno torneio, em retaliação ao corte de Nikolas Anelka, depois de uma discussão com o treinador. O resultado foi sentido: eliminação na primeira fase, em um grupo que contava com México, a anfitriã África do Sul e Uruguai.

A nova saída precoce do time durante o torneio provocou uma avalanche de críticas por parte da imprensa especializada e reacendeu o debate sobre a questão da seleção multi-étnica, e dessa vez, com tons bem mais polêmicos. Se em 98, a nação abraçava sua unicidade, em 2010 a sociedade francesa rachou: os jogadores que representavam minorias étnicas foram apontados como principais responsáveis pelo mau desempenho do time, e o debate ganhou ainda mais fogo depois dos atentados que ocorreram no país nos anos seguintes.

Após uma época em que a diversidade era aclamada e tida como o elemento aglutinador da sociedade, o país ruiu diante do ódio social e religioso, xenofobia e terrorismo, que assolaram grande parte da Europa, Oriente Médio e África. A crise chegou a tal ponto que autoridades da Federação Francesa de Futebol chegaram a propor um limite de 30% das vagas em academias esportivas e escolinhas de futebol do país para crianças árabes e negras de 12 e 13 anos.

A medida gerou revolta por parte da população, principalmente das classes mais baixas, que representam a maioria de imigrantes da França. A então ministra de esportes, Chantal Jouanno chegou a pedir um inquérito investigando o caso e afirmando que “o racismo não tem lugar no esporte” e o técnico da época, Laurent Blanc, que foi campeão com a geração ‘black, blanc, beur’, foi acusado de aprovar a medida, mas negou as acusações dizendo que não era sua “filosofia”. Foi demitido em 2012, dando lugar ao também campeão Didier Deschamps, encarregado de focar os jogadores em jogar futebol, o novo treinador começou o ciclo da geração atual que fez uma campanha razoável em 2014, parando nas quartas diante da futura campeã Alemanha.

Geração Atual

O elenco francês de 2018 chega renovado e com grandes jogadores do futebol europeu e mundial. Mais uma vez, os azuis são considerados favoritos para a Copa da Rússia, depois de um vice campeonato na Euro 2016.

Nomes como o habilidoso Paul Pogba, os matadores Kylian Mbappé e Griezmann além de uma defesa sólida, com Umtiti do Barcelona e Varane, do Real Madrid. Os desfalques ficam por conta de Dimitri Payet, meia do Olympique de Marseille, e o experiente zagueiro Laurent Koscielny.

A França ainda carrega como característica principal a diversidade em seus jogadores e o bom futebol com a bola nos pés, resta saber se a sociedade francesa aprendeu com os seus erros para lidar com qualquer resultado, seja ganhando ou perdendo.

Elenco da frança em 2018 (Foto: Divulgação)

JOGOS NA COPA DO MUNDO

16/06 — França X Austrália — 7h na Arena Kazan.

21/06 — França X Peru— 12h no Estádio Central.

26/06 — Dinamarca X França — 15h em Lujniki.

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