Futebol quechua resgata raízes sul-americanas

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O Contra-Ataque
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5 min readMar 29, 2019
Foto: Reprodução Twitter @ClubMushucRuna1

“Mushuc Runa S.C. é um caminho para incluir a sociedade rural e indígena, para diversificar as profissões no âmbito esportivo. Já é hora dos indígenas serem atores em todas as atividades de progresso e desenvolvimento em nosso país”.

Luis Alfonso Chango Pacha, presidente vitalício do Mushuc Runa S. C e gerente geral da Cooperativa de Ahorro y Credito Mushuc Runa.

Três meses após a profanada final da Copa Libertadores da América, o espírito originário sul-americano é consagrado no torneio que leva o mesmo nome. No dia 19 de março de 2019, o equatoriano Mushuc Runa Sporting Club estreou em uma competição da CONMEBOL, a Copa Sul-Americana. Em Santiago, Chile, empatou por 1 a 1 contra o Unión Española.

Fundado em 2003, o clube de 16 anos tem suas raízes na província de Tungurahua, no Equador, onde foi formado por indígenas das populações locais inicialmente como uma equipe de bairro para representar a Cooperativa de Ahorro y Credito Mushuc Runa nas ligas das paróquias de Juan B. Vela e Pilahuin.

Foto: Reprodução Blog Guaytambo

Localizado na comunidade de Echaleche, na paróquia Pilahuin do cantón de Ambato, capital da província, a equipe do “Ponchito” assume a identidade andina não apenas no nome, que significa Homem Novo em quechua (uma das famílias linguísticas nativas), mas também no uso das vestimentas típicas do povo Chibuleo, originário do território que conta com outras quatro populações originárias.

A Cooperativa surgiu em 1997, durante o Feriado Bancário, período no qual o Equador passava por uma grande crise econômica, na qual 70% das instituições financeiras fecharam as portas e as camadas mais populares foram submetidas a miséria, principalmente as populações campesinas e indígenas.

“A Cooperativa Mushuc Runa tem sua raiz na mentalidade de facilitar créditos aos indígenas e ao povo campesino. Se destacou por ser uma cooperativa que nasceu do povo, honesta e transparente onde a maior vantagem é a boa administração de suas finanças”, explica em entrevista ao Diario AS, Karina Chango, diretora de Responsabilidade Social da Cooperativa e membro fundadora do Mushuc Runa S. C.

Em 2007, Luis Alfonso Chango Pacha, gerente geral da Cooperativa e futuro presidente vitalício do clube, encabeçou, com mais 130 sócios da instituição, a profissionalização do time, que passou a integrar a Asociación de Fútbol Profesional de Tungurahua. Em 2018, foi eleito melhor dirigente pela Federação Equatoriana de Futebol.

“Meu projeto é romper barreiras mentais. Não enriquecer, mas sim elevar a autoestima dos indígenas. Localizar jogadores nas comunidades, que tenham diretores técnicos, árbitros, e que nos próximos sete anos possamos colocar ao menos um indígena na seleção”, declarou o dirigente em entrevista a AFP em 2014.

Foram três anos na terceira divisão até que, em 2011, vice-campeão da divisão, o clube alcançou a Série B do futebol nacional. Em 2013, alcançaram novamente o posto de vice-campeões e subiram de forma inédita à elite do futebol equatoriano, onde permaneceram até 2016.

A ascensão foi um grande passo, elevando o status do clube, que desenvolveu um complexo esportivo para suas categorias de base e atividades como o Campamento de Fútbol Mushuc Runa, que funciona como uma escola de futebol para crianças durante as férias escolares.

Além disso, em 2012, a Cooperativa iniciou a construção do Estadio Cooperativa de Ahorro y Crédito Mushuc Runa, inaugurado em 17 de novembro de 2018. Com capacidade para 6 mil pessoas, e um projeto de ampliação para 21 mil lugares, se localiza a 3.200 metros acima do nível do mar, garantindo-o a maior altitude de um estádio no Equador.

Manter o primeiro clube quechua a alcançar a Série A do futebol equatoriano custa 2,3 milhões de dólares anualmente. Esse valor, além de pagar seus 180 funcionários, serve para manter o complexo desportivo das categorias menores e o estádio. Comparativamente, equipes da primeira divisão como Barcelona, Liga de Quito e Emelec contam com 10 a 15 milhões de dólares apenas para montar seus elencos.

Em 2018, o elenco “Pura sangre” comandado por Geovanny Cumbicus saiu campeão da Série B. O primeiro título profissional foi alcançado em uma campanha de 44 jogos. Foram 23 vitórias, 11 empates e 10 derrotas, totalizando 80 pontos. Equipe menos vazada, sofreu 39 gols e balançou as redes 66 vezes.

Com o título, disputaram a repescagem pela vaga na Copa Sul-Americana com o oitavo colocado da Série A, Sociedade Deportiva Aucas — equipe fundada pela multinacional Shell. Após uma vitória, por 1 a 0, como local no jogo de ida, empataram por 2 a 2 na volta e garantiram a vaga inédita em um torneio regional.

Destaque no sorteio da Sul-Americana, o clube recebeu o apoio do ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín, que viajou até o Equador, onde participou de uma conferência de imprensa, visitou a comunidade Chibuleo de San Francisco e realizou uma partida de exibição nos campos onde treinam as categorias menores do Mushuc Runa S. C.

Com mais de um milhão de indígenas no território equatoriano (7% da população nacional) divididos em 15 povos, a participação em um torneio sul-americano de um clube formado por nativos, com o apoio de uma Cooperativa também local, reafirma a potencialidade regional dos povos originários americanos e sua autonomia.

Mais além, combate a discriminação racial no país em que 65% de seus habitantes afirmam existir racismo no país, sendo 88% direcionado aos afro-equatorianos e 71% aos indígenas. Pesquisa realizada em 2004 (última publicada) pela Secretaria Técnica de Frente Social e o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos.

As raízes sul-americanas resistem as ofensivas eurocentristas ao futebol popular.

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