La garra charrúa

Carrasco do Brasil desde o Maracanazo, o Uruguai aposta nas joias da base e no velho treinador para ir em busca do tri

Maria Tereza
O Contra-Ataque
10 min readJun 11, 2018

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Por Gabriel Paes e Maria Tereza

Apesar da Argentina ser a grande rival da seleção brasileira, os jogadores do país vizinho também são um desafeto nosso. Donos do território que já foi brasileiro na época da colonização, os uruguaios têm uma história que vai muito além do silêncio deixado no estádio do Maracanã em 1950. Uma história de resistência, garra e amor pelo esporte.

Estádio Centenario, em Montevidéo. Um dos primeiros grandes palcos do futebol mundial.

Os inventores da volta olímpica

Antes mesmo da Copa do Mundo ter sido criada, o Uruguai se tornou a primeira seleção sul-americana a cruzar o Oceano Atlântico para disputar um torneio internacional. Em 1924, os jogadores do pequeno país do sul da América chegaram em Paris, na França, para participar dos Jogos Olímpicos.

Contando com seu bom futebol e o fator surpresa — ninguém na competição já havia visto o time jogar — a (a partir de agora) celeste olímpica conquistou a medalha de ouro na vitória contra a Suíça por 3 x 0. Pela primeira vez na história, um time de futebol comemorava um título andando ao redor do campo acenando para o público. Nascia ali, no Estádio Olímpico de Colombes, a famosa volta olímpica.

Em 1924, a seleção uruguaia inventou a volta olímpica (Foto: Reprodução)

E assim o fizeram novamente em 1928, dessa vez em Amsterdã, na Holanda, quando se tornaram bicampeões olímpicos. Porém, naquele ano, não foram os únicos de seu continente a participar dos jogos. Argentina, Chile e México embarcaram na jornada também.

Graças ao Uruguai, a Europa conheceu e reconheceu a qualidade do futebol sul-americano. E os frutos dessa conquista seriam colhidos em 1930, com a criação do mais importante campeonato de futebol do mundo.

Os primeiros campeões

Seleção Uruguaia em 1930 (Foto: Reprodução)

Por ser bicampeão olímpico, o Uruguai foi escolhido pela FIFA como sede da primeira Copa do Mundo, em 1930. Em sua primeira edição, era bem diferente de como a conhecemos hoje. O torneio contou com 13 participantes, sendo que apenas quatro deles eram europeus, que só foram para o Uruguai porque a entidade custeou a viagem — naquela época só se viajava de navio, que era bem mais caro (e demorado).

A celeste ganhou do Peru por 1 x 0 e da Romênia por 4 x 0 na fase de grupos. Nas semifinais, enfrentou a Iugoslávia, contra quem aplicou uma goleada de 6 x 1 e foi para a final, onde encontrou sua vizinha Argentina. 93 mil pessoas viram a Celeste vencer nossos hermanos no Estádio Centenário de Montevidéu por 4 x 2, com gols de Dorado, Cea, Iriarte e Castro.

Uruguai: primeiro campeão do mundo da história do futebol.

A garra uruguaia não fica só dentro do campo

A celeste voltaria a participar de uma Copa do Mundo apenas em 1950, no Brasil. Nesse meio tempo, ocorreu um dos episódios mais notáveis da história da seleção. Em 1948, os boleiros do país entraram em greve, em protesto aos baixos salários e contra a lei do passe, que tornava os atletas amarrados aos seus clubes.

Por isso, os jogadores liderados pelo capitão Obdulio Varela entraram em greve. Conhecido com o “El Jefe Negro” (O Chefe Negro), o jogador já havia passado por times como Montevideo Wanderers e Peñarol.

Capitão e líder sindical: este era ‘El Jefe Negro’ (Foto: Reprodução)

A luta durou sete meses e contou com apoio popular, entre amistosos e arrecadações organizadas pelos grevistas. Por medo de que a seleção não participasse do mundial em 1950, os dirigentes atenderam as reivindicações do movimento em abril de 1949. Eles passaram a receber 10% do valor das transferências e ganharam mais liberdade na lei do passe.

E se engana quem acha que o espírito de luta dos uruguaios morreu ali. Em 2016, os jogadores da seleção entraram em conflito com a AUF (Associação Uruguaia de Futebol), exigindo transparência no processo de renegociação dos direitos de imagem da equipe e dos contratos de materiais esportivos.

O episódio serviu de inspiração para a criação do movimento “Más Unidos que Nunca”, que liderou uma greve ocorrida no final de 2017. Durante 15 dias, os atletas do país paralisaram suas atividades em protesto à extensão do contrato do grupo Tenfield de direitos de transmissão e a falta de representatividade no sindicato, além de exigir, com um documento assinado por 700 atletas, que a AUF parasse de usar a imagem dos jogadores.

A greve chegou ao fim quando a federação reconheceu o grupo e aceitou estabelecer relações além do sindicato, para ouvir as reivindicações.

Maracaná

O Documentário, dirigido por Sebastián Bednarik e Andrés Varela, retrata com imagens da época o que foi a destruição do sonho brasileiro em 50, mostrando a soberba e arrogância dos donos da casa e lances do jogo que entrou para a história.

El Maestro

Oscar Tabárez, treinador da Seleção Uruguaia desde 2006 (Foto: Paulo Sergio/LANCE!Press)

Chamado de maestro (professor, em espanhol) pelos jogadores não apenas por ser o técnico, mas também por ter de fato dado aula em escolas públicas no país, Oscar Tabárez assumiu a seleção em 2006 com o projeto de renovar o time.

A primeira convocação de Tabárez veio em 1988, quando o treinador, que havia sido campeão da Libertadores com o Peñarol no ano anterior, foi o escolhido para chefiar o time na Copa do Mundo em 1990. A passagem, no entanto, não foi brilhante e o técnico acabou passando por clubes como Boca Juniors, Cagliari e Milan, até voltar para o comando da Celeste em 2006.

O Uruguai ficou em 5º nas eliminatórias para o Mundial e, na repescagem, caiu para a Austrália, que voltava a Copa depois de 31 anos. Após o fiasco, Jorge Fossati foi demitido e a confiança retornou ao colo do Maestro. Desta vez, o projeto era ousado e envolvia o desenvolvimento, desde as categorias de base, de uma forte e competitiva seleção.

O técnico hoje responde pelo trabalho mais longevo a frente de uma Seleção na história do futebol (12 anos) e vai para sua quarta disputa de Copa, sendo a atual edição a terceira consecutiva desde o início da reestruturação.

Coisa de Louco! — A campanha de 2010

O então “Professor Tabárez”, em 1983, voltando a lecionar.

O Uruguai não chegava muito longe no torneio desde 1970, quando caiu nas semifinais contra o Brasil. Após não participar da edição de 2006 e se classificar para a seguinte na repescagem, a celeste não era uma das favoritas na copa de 2010, mas alcançou o quarto lugar graças ao trabalho de Oscar Tabárez.

Na África do Sul, o Uruguai liderou o grupo A, passou pela Coreia do Sul nas oitavas e encontrou Gana nas quartas de final. As duas seleções protagonizaram uma das partidas mais emocionantes da história do futebol. O centro-avante Suárez fez até defesa — com as mãos — e viu Muslera defender o pênalti que poderia eliminar a Celeste:

Eis a bizarrice do lance: Luisito ainda conseguiu ver, na saída do gramado, a bola no travessão de Muslera.
Diego Forlán foi eleito o melhor jogador da Copa de 2010.

Já no segundo tempo da prorrogação, a partida ia terminando em 1 x 1, o que levaria aos pênaltis. Quando nos últimos minutos, depois da bola ter sido rebatida diversas vezes na área uruguaia, Adiyiah cabeceou com destino certo. Mas ele não contava com o reflexo de Suárez que, num momento de desespero, fez o papel de goleiro e espalmou a bola. O árbitro marcou o pênalti e expulsou o camisa 9.

O artilheiro da seleção africana Gyan pegou a bola para realizar a cobrança e o inacreditável aconteceu: a pelota bateu no travessão. Suárez teve tempo de ver o lance antes de sair de campo e o fez comemorando.

O camisa 9 foi um dos heróis daquela partida histórica.

E vamos aos pênaltis! O placar estava em 3 a 2 para os uruguaios, com gols de Diego Forlán, Mauricio Victorino e Scotti para um lado e de Gyan e Appiah do outro. Loco Abreu foi para a cobrança. Mesmo com esse apelido, ninguém imaginava que o jogador tivesse coragem de dar a cavadinha — jogada pela qual era conhecido — àquela altura do campeonato. Mas ele fez e marcou. Após 40 anos, a seleção do país de pouco mais de 3,5 milhões de habitantes estava numa semifinal de Copa do Mundo novamente.

Aquele jogo fez parecer que tudo era possível para a celeste. Mas, infelizmente, os sul-americanos pararam por ali. Não conseguiram passar pela forte Holanda, perdendo de 3 x 2 na semifinais, e também não alcançaram o terceiro lugar ao perderem para a Alemanha pelo mesmo placar.

Ainda assim, o Uruguai fez história na África do Sul e mostrou mais uma vez ao mundo o que la garra charrúa era capaz de fazer.

O que houve em 2014?

Ninguém sabe explicar ao certo. Os deuses do futebol capricharam muito dessa vez e a Copa ficou marcada pela série de resultados inesperados.

O Grupo D era tido como o grupo da morte: Inglaterra, Uruguai e Itália, todas campeãs, se juntaram à Costa Rica, que aparentemente já nascia morta. Mas alguém decidiu aprontar:

A Costa Rica liderou o grupo de forma invicta e caiu apenas nas quartas para a Holanda, já nos pênaltis.

A derrota logo de cara na competição não abalou os Uruguaios, que não contaram com o craque do time, Luisito Suárez e em seguida venceram Inglaterra e Itália, respectivamente. Mas o excesso de confiança e a mística do torneio fazem com que todos os jogos demandem o máximo de atenção de todos os atletas: a Copa é decidida nos detalhes.

Após a derrota acachapante, foi preciso arrumar a casa e mirar o próximo adversário: os ingleses, que também haviam perdido a primeira partida (2 x 1 para a Itália). O que ninguém imaginava era que a Costa Rica ia mesmo passar em primeiro e que o pior derrotado se reergueria.

Brilhou a estrela do Pistolero, que decidiu com dois gols.

Vale a pena rever a alegria dos irmãos sul-americanos. (Fotos: Reuters/Lucas Rizzatti)

E o último jogo da chave foi pra lá de quente. O que seria de Luisito sem a sua irreverência? O jogador estava com fome de vitória — literalmente:

(Foto: Reuters)

Aos 70 minutos de jogo, e com um 0 x 0 no placar, o Uruguai tentava alçar a bola na área italiana, que segurava o empate para avançar de fase. O atacante deu um “chega-junto” no zagueiro Chiellini e o mordeu na grande área. Acabou suspenso pela Fifa por nove jogos da seleção nacional, além de quatro meses de qualquer atividade ligada ao futebol — ele retornou apenas em 2016, no jogo contra o Brasil, válido pelas eliminatórias.

Aqui você vê o lance de perto:

Copa-2018

O rendimento da seleção uruguaia para essa Copa ainda é incerto. O time ficou em 2º nas eliminatórias, mas como avaliar se isso foi bom ou ruim? A imprensa bateu na Argentina, que vem logo atrás com apenas 3 pontos a menos, então não há lógica em enaltecer a campanha da Celeste. Por outro lado, a vice-liderança nessa embolada competição carimba, com respeito, o passaporte dos uruguaios para essa Copa. E o time vem com novidades.

De Arrascaeta é um talento diferenciado e rosto conhecido dos cruzeirenses.

Muito se espera do camisa 10 do time, o meia De Arrascaeta, que vai para sua primeira Copa. Habilidoso e com apenas 24 anos, vai tentar espantar a alcunha de “promessa” que cercou nomes como Lodeiro, em um passado recente.

O atleta do Cruzeiro havia jogado apenas pelo Defensor, time local, antes de vir ao Brasil.

Uma grande incerteza do time é no gol: enquanto Muslera, campeão da América em 2011 segura sua titularidade, Martin Silva, do Vasco, pede passagem. O arqueiro de 35 anos caminha para sua última Copa, estando sempre à sombra do titular do Galatasaray. O vascaíno se destaca principalmente por ser muito acionado em função das dificuldades táticas vividas pelo time carioca desde antes mesmo de sua chegada, em 2014.

A defesa é segura pois conta com o entrosamento da dupla de zaga Godín e Giménez, que atua no Atlético de Madri desde 2013. O primeiro, dez anos mais velho que o companheiro, é símbolo da reconstrução Celeste que o Maestro Tabárez iniciou após o fracasso em 2005, e que agora pode render os tão esperados frutos.

O que podemos esperar do Uruguai nessa copa? Só essa dupla poderá nos dizer:

Uruguai, o único time do mundo a ter duas referências assim na grande área. (Foto: Sebastião Moreira/EPA)
  • 15/06 — Egito x Uruguai — 9h, sex
  • 20/06 —Uruguai x Arábia Saudita — 12h, qua
  • 25/06 — Rússia x Uruguai — 11h, seg

*horários de Brasília

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Maria Tereza
O Contra-Ataque

Jornalista formada pela PUC-SP, são paulina e fã do Adam Sandler.