Carlos Tévez | Los Ricos de La Pobreza

O homem que trocou o maior salário do planeta pelo clube do coração estreia serie n’O Contra-Ataque

João Henrique Maia
O Contra-Ataque
9 min readApr 16, 2020

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Por João Henrique Maia e Pedro Duarte

Na maioria esmagadora das vezes, os jogadores que saem de bairros humildes das periferias das cidades jamais voltam.

Um dos casos mais famosos, que contrariam isso no Brasil, é o de Adriano Imperador. É difícil alguém que se acostumou com a fama e o luxo querer voltar a conviver com a miséria. No entanto, não é só no Brasil que essas coisas ocorrem. Existe também um jogador argentino que passou por diversos países com culturas e costumes diferentes e, mesmo assim, retornou ao local que nasceu.

(FOTO: Uol)

Em 2018, este atleta disse em entrevista ao Jornal Olé, da Argentina, que sempre que ia ao seu bairro saia de lá com a sensação de ter voltado a viver e lá era onde se sentia mais vivo do que nunca. O autor desta fala é esse menino aí.

De Martínez a Tévez

Carlos Alberto Martinez Tévez é um dos jogadores mais icônicos no cenário futebolístico atual. Ele nasceu na favela de Fuerte Apache, nome que gerou seu apelido até hoje (El Apache), região localizada em Ciudadela, conhecida por ser uma área marginalizada do subúrbio de Buenos Aires.

Fuerte Apache (Imagem: Google Maps)
Fuerte Apache (Imagem: Google Maps)

Antes mesmo de nascer, Carlitos sofreu com a perda do pai, assassinado com 23 tiros pela polícia enquanto assaltava uma cafeteria. Logo aos seis meses de idade, foi entregue aos seus tios Adriana e Segundo Raimundo Tévez — a mãe, Fabiana Martínez, tinha surtos psicóticos e não tinha condições psicológicas de cuidar da criança.

A história por trás dessa troca de sobrenome não é tão simples assim. O então Carlos Martínez fazia parte de uma pequena equipe de futebol chamada All Boys, da cidade de Buenos Aires. Sua grande habilidade chamou a atenção de clubes mais tradicionais, e não demorou muito para o Boca Juniors mandar representantes para a contratação do menino.

O All Boys não queria vender o atleta de forma alguma. Depois de muita pressão e insistência da família, o clube liberou Carlos por 10 mil dólares. Foi aí que a mudança de sobrenome ocorreu, pois Carlitos queria ser um Tévez, e carregar o sobrenome de Segundo dali pra frente. Por essa polêmica toda, os pais adotivos da criança mudaram seu nome para Carlos Alberto Martínez Tévez, evitando uma maior exposição do garoto, dada uma possível repercussão dessa história.

No entanto, a diretoria do All Boys não superou esse acontecimento e diz que chamam o jovem pelo nome errado atualmente. Para eles seu nome deveria continuar Martínez.

Infância e Adolescência

O bairro de Fuerte Apache, onde o jogador viveu durante um bom período de sua vida, sempre foi conhecido por conta da violência e pobreza lá instaladas, problemas que estiveram lado a lado com Tévez naquela fase.

Foto: Marco Luzzani / Getty Images

O jovem, que sofria com a dificuldade financeira tão comum naquele lugar, carrega desde os 10 meses de idade cicatrizes profundas no pescoço, causadas por uma queimadura. Com pouco menos de um ano, derrubou uma chaleira com água fervente em si mesmo. Tais marcas cobrem o lado direito do pescoço do argentino, e de certa forma se tornaram parte da história do atacante.

“Tudo acontece por uma razão e quando me olho no espelho a cicatriz me lembra de onde venho e quem eu sou. Fiz terapia durante três meses, mas não consigo me lembrar dessa experiência. Eu era muito pequeno quando me queimei. Mesmo assim, quando olho para elas, sei que são parte da minha vida. Nunca quis operar [para apagar as cicatrizes], assim me lembro também da minha infância, que foi muito feliz, e não guardo rancor por nada. Faria tudo de novo.” — Tevez, em entrevista ao jornal espanhol “Marca”.

Não bastasse esse sofrimento, a falta de auxílio naquele bairro fez com que muitos colegas de Carlitos trilhassem um rumo bem diferente do dele. Se por um lado o jogador chegou a receber o maior salário do planeta, quando esteve no Shanghai Shenhua da China, em 2017, seus companheiros de garoto não tiverem a mesma sorte, muitos entraram para o mundo do tráfico e nem sequer atingiram a vida adulta.

Tévez e Cabañas ainda crianças. (Foto divulgada pelo jornal Clarín)

Em especial Dário Coronel, conhecido como Cabanãs, pela familiaridade com o ex-lateral do Boca Roberto Cabañas.

Foi justamente por causa deste amigo que o jogador, na época com apenas 17 anos, realizou uma de suas maiores loucuras. Na ocasião, Carlitos havia sido convocado para a Seleção de base da Argentina, porém pouco antes de partir para a concentração, encontrou Cabanãs pelo bairro, e o amigo disse que era seu aniversário e queria que comemorassem juntos naquela noite. Tévez disse que seria muito difícil comparecer, mas que independente do que acontecesse, eles sempre estariam juntos.

Porém, no final da tarde o jovem se viu entediado na concentração e sentiu-se na obrigação de encontrar o amigo naquele momento tão importante. Desta forma, Carlitos fugiu da concentração e foi até a casa do paraguaio, também localizada no Fuerte Apache.

Alguns dos amigos: Coronel é o de boné, no canto direito e Tévez está sentado com o moletom da Nike.

O jovem, que para muitos colegas era até mais habilidoso que Tévez, andava com “más companhias”, como reclamavam os próprios pais. Seus colegas de time o acusaram de roubar algumas roupas e os rumores sobre o envolvimento com drogas e o crime só aumentavam. Depois de uma tentativa de assalto, a polícia o perseguiu e o encurralou. O jovem não viu outra saída além de atirar na própria cabeça.

No entanto, nem tudo foi tragédia nessa fase de sua vida. Durante esse período turbulento e intenso, Tévez estabeleceu um contato direto com a Cumbia, ritmo dançante da argentina e muito popular nas periferias das grandes cidades do país.

Foi justamente por vir da periferia que ele se identificou muito com este estilo, tanto que por todos os clubes por onde passou a levou contigo, seja dançando no vestiário com os companheiros ou após comemorações de títulos e gols, Tévez e cumbia jamais se separaram. Inclusive, junto com seus antigos amigos e seu irmão Diego, formou o Piola Vago, grupo de cúmbia que produziu a música Apache, que se refere a vida do atleta e a realidade do bairro.

Tévez e o Povo Argentino

Tévez foi imortalizado nessa intervenção urbana em uma habitação em Buenos Aires. (Imagem: Buenos Aires Street Art)

O argentino esteve presente nas listas de convocação para a seleção desde a categoria sub-15. No entanto, conseguiu apenas dois títulos, o Sul-americano Sub-20 de 2003 e as Olimpíadas de 2004, ou seja, nenhum pelo time principal da Argentina.

A falta de títulos pela seleção é um fator muito importante para que haja desconfiança em relação a um atleta de futebol, principalmente quando seu rendimento no clube é acima da média. Messi e Agüero, por exemplo, são jogadores fenomenais, mas questionados por muitos quando jogam com a camisa albiceleste. Apesar desse estigma, o mesmo não acontece com Carlitos.

Podemos começar a explicar o motivo disso pelo simples fato de sua origem muito humilde, que aproxima o atleta ao povo. Tévez representa a massa popular durante o jogo.

Tévez vai a loucura com los hinchas da Bombonera.

Além disso, sua garra e vontade para defender a camisa azul e branca sempre foi admirável. Em 2007, para defender a seleção, ele abdicou quase totalmente de suas férias para poder disputar a Copa América. O povo argentino interpretou esse gesto como se o jogador estivesse declarando um amor incondicional ao país, aumentando ainda mais sua popularidade e o tamanho de sua representatividade.

Em contrapartida, Tévez passou por um momento conturbado em 2011. Na Copa América daquele ano, em que a Argentina foi a anfitriã, o jogador foi o único a desperdiçar uma cobrança na disputa de pênaltis que resultou na eliminação para o Uruguai, um rival histórico. O povo argentino deixou-se levar pela raiva e deixou de lado, por um momento, o amor que sentia por Carlitos. A ironia desse caso está no fato que o então treinador da argentina, Sergio Batista, anunciou que não levaria o craque para a competição. Foi através do apelo público que Batista repensou sua decisão.

Tévez no Brasil

Dada a rivalidade entre brasileiros e argentinos no futebol, dificilmente um hermano vira ídolo em um clube brasileiro. Carlitos não só virou um ídolo no Corinthians como, também, passou a ter admiradores por todos os outros clubes daqui, inclusive nos rivais. Tévez chegou ao Brasil em 2005, sendo a transferência mais cara da história do futebol brasileiro naquele momento. A discussão sobre isso é pertinente até hoje, uma vez que até 2019 continuou ocupando essa posição, mesmo em um mercado cada vez mais inflacionado.

A passagem de Carlitos vai além de números, e isso se deve ao fato da semelhança da origem do jogador com grande parte da torcida corinthiana, conhecida por ser da massa popular. A identificação de torcedores com a personalidade e origem de um atleta facilita muito a transição de um jogador bom para um ídolo.

O argentino marcou 20 gols, dois gols a menos que o artilheiro Romário, e foi campeão do brasileirão de 2005. (Foto: Djalma Vassão / Gazeta PRess)

Pra fechar com chave de ouro, logo em seu primeiro ano no time paulista, conquistou o campeonato brasileiro e foi eleito o craque da competição. A partir daquele momento o argentino entrou de vez no coração da torcida corinthiana, e até alguns anos atrás seu nome era pedido em toda janela de transferência.

É comum que jogadores bem sucedidos nos clubes brasileiros exerçam certa influência no nosso povo. O caso mais recente é o de Gabriel Barbosa, do Flamengo. Basta entrar nas redes sociais que imagens de pessoas tentando imitar o estilo do penteado ou a comemoração do atacante surgem na tela. Com Tévez não foi diferente. Era recorrente crianças brincarem de futebol em suas casas e comemorarem dançando cumbia, assim como cortarem o cabelo ao estilo do craque, que na época ostentava um visual bem peculiar.

Tévez Hoje em Dia

Tévez cumprimenta Maradona com um selinho antes da decisão do campeonato argentino de 2020. (Foto: Juan Ignacio/ EFE)

Depois de ter rodado o mundo mostrando seu talento e carisma e ter disputado duas copas do mundo, hoje Carlitos está com 36 anos e voltou ao lugar que o projetou no futebol, por amor: o Boca Juniors.

Mesmo com todo o dinheiro e sucesso que conseguiu, Tévez sempre carregou Fuerte Apache consigo e nunca esqueceu aqueles que mais o ajudaram. O craque é casado com Vanessa Mansilla e preserva bastante a imagem de sua família, diferente de muitos jogadores nas redes sociais. O craque não mede esforços, mas tem os pés no chão com os três filhos Kate, Florencia e Lito:

“Eles vivem em outra dimensão, um contexto diferente do que eu vivi na infância. Claro que quero dar sempre o melhor para eles, o melhor celular, Ipad… mas preciso dizer a eles que estudem e que o Ipad custa caro. Eu gosto de levá-los ao bairro e mostrar a eles que para as outras crianças é muito difícil conseguir tudo isso. Quero que eles comparem e abram a cabeça.”

Cartaz de divulgação da série sobre a vida de Carlitos.

A infância do jogador em Fuerte Apache é tão intensa que deu origem a uma série. Quem for fã de futebol e quiser saber um pouco mais sobre sua vida, pode assistir “Apache A Vida De Carlos Tévez”, um relato emocionante de história de superação.

Passagens como a fuga da concentração com o objetivo de comemorar o aniversário do amigo e até mesmo a história da saída do All Boys estão presentes no documentário.

Esse é o primeiro texto da série “Los ricos de la pobreza”, aqui n’O Contra-Ataque, que conta a origem de jogadores latino-americanos.

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