Mea Culpa

De Barbosa até os dias atuais. Como, e por qual razão, o Brasil elege um único jogador culpado por suas eliminações na Copa do Mundo?

Pedro Duarte
O Contra-Ataque
6 min readJun 10, 2020

--

Por Pedro Duarte

A decepção é a insatisfação que surge quando as expectativas sobre algo ou alguém não se concretizam (Foto: Terra)

Quantas vezes o brasileiro comum, entre suas peladas rotineiras, já culpou o primeiro colega de equipe que apareceu depois de uma derrota? Muitas vezes a decepção é mascarada por uma tentativa de achar um culpado direto da derrota daquela partida ou daquele campeonato.

Quando pensamos no cenário profissional, o brasileiro comum piora . Basta o time dele perder que começa um movimento querendo tirar o presidente, treinador, jogador, massagista e gandula da equipe. Não é possível julgar, muito menos falar que não é normal. Eu já fiz. Provavelmente você também.

Na sociedade brasileira isso ocorre mais do que no exterior. Basta comparar o número de trabalhos realizados por diferentes treinadores entre as divisões de elite das principais competições do planeta. Em uma pesquisa realizada pelo Globo Esporte, de 2011 até 2019 o número de técnicos que atuaram no Brasil chega a ser quase o triplo, se comparado aos países em que houve mais troca.

Essa situação nos leva ao ponto principal do texto. Imagine um cenário onde todos os torcedores passam a torcer para uma mesma equipe. Um campeonato de futebol em que os brasileiros em sua totalidade torcem para o mesmo elenco. Estou falando da Copa do Mundo. O evento com a maior cobertura de analistas de Facebook, criticando desde a convocação até uma eventual premiação.

(Foto: Globo)

Antes mesmo das redes sociais existirem, os comentaristas de bar, por exemplo, já atuavam. A globalização não é uma ameaça para esses profissionais. É, na verdade, o meio para que alcancem um número maior ainda de pessoas. Nesse cenário do campeonato mundial, os analistas e comentaristas adoram tentar achar uma pessoa culpada pelo fim da trajetória na competição.

Participantes do duelo principal, Fernandinho (apontado como algoz do Brasil) disputa bola com o atacante belga Lukaku. (Foto: Toru Hanai)

2018

Voltemos aos tempos atuais. Na copa da Rússia tivemos duas pessoas muito criticadas pela eliminação brasileira: alegam que Fernandinho deixou de fazer em Lukaku uma falta que até em campeonatos amadores seria cometida, além de ter feito um gol contra. Criticam também a convocação de Tite, em que Fred, Taison e Renato Augusto estavam presentes. Acreditam que existiam jogadores mais preparados para enfrentar um desafio tão grande.

2014

David Luiz sai chorando de campo no Mineirão, em Belo Horizonte. (Imagem: AP Photo/Themba Hadebe)

Na copa do Brasil poucos foram poupados, por motivos óbvios. No entanto, David Luiz é uma lembrança especial para quem gosta de achar um culpado. A frase icônica “Só queria poder dar uma alegria ao meu povo” foi o suficiente para que entrasse na galeria de jogadores esculachados por serem considerados culpados diretos em eliminações na Copa do Mundo.

2010

O pisão em Sneijder (Foto: O Globo)

Em 2010, Felipe Melo foi extremamente criticado pelo mesmo grupo, por conta de uma expulsão considerada muito infantil e desnecessária, além de fazer um gol contra. O tempo passou e até agora, dez anos depois, escutamos que ele jamais poderia ter entrado em um jogo quente como aquele Brasil x Holanda.

2006

O gol de Henry que classificou os franceses e acirrou ainda mais nossa rivalidade com os Bleus.

Em 2006, todos os críticos caçadores de culpados se perguntaram o motivo de Roberto Carlos ter parado para arrumar seu meião e deixado Henry livre para fazer o gol pós cobrança de falta perigosa. Isso mostra que nem uma grande referência da posição escapa dessa maldita lista.

“Nós tínhamos ensaiado de não entrar na grande área, já que a bola é sempre do goleiro. Se eu entro sozinho na área e os outros não entram, eu dou condições. Minha obrigação era de não fazer nada, fiz o que tinha de fazer. Com a minha estatura, não posso saltar com um homem de 1,90 m”, comentou o jogador em entrevista ao “Fantástico”, após a partida.

Se você, caro leitor, acha que isso é uma característica do futebol moderno, sinto te informar que não é verdade. Em 1982, Toninho Cerezo, vitorioso volante que tinha como característica ser um jogador de criação, errou um passe simples no setor defensivo que originou um dos 3 gols de Paolo Rossi na vitória de 3x2 da Itália. Inclusive, muito se discutiu pelo país sobre o estilo de jogo que deveria ser apresentado a partir desse momento. Muitos começaram a achar que jogadores com características defensivas jamais poderiam participar de criação de jogadas, uma vez que times que apresentavam futebol relativamente mais feio estavam sendo mais efetivos que os que jogavam bonito

Toninho Cerezo (Foto: CBF)

Se formos ainda mais longe, 70 anos atrás, acharemos outra tentativa de culpar alguém pelo fracasso coletivo. No entanto, esse caso é diferente dos demais. O Brasil não tinha sido campeão do torneio, que desta vez estava sendo sediado em território canarinho. Por ser realizado aqui e nosso elenco ser relativamente bom, criou-se muita expectativa.

Tudo ocorreu como o esperado. Brasil chegou na tão desejada final e precisava apenas de um empate para conquistar seu primeiro título mundial. O time ainda conseguiu sair na frente. Infelizmente, o Uruguai, outro time forte, empatou e desempatou. O último gol sofrido pelo Brasil ocorreu em uma situação em que o goleiro Barbosa deixou de defender uma bola que em outras situações não teria muita dificuldade para executar a ação. Essa partida é conhecida até hoje como Maracanazo.

A suposta falha de Barbosa fez com que sua carreira ficasse manchada para sempre. Muitos que o viram jogar falariam, se perguntados, que foi um grande goleiro, mas não deixariam de citar o trágico lance. O apelido de “o homem que fez o Brasil chorar” foi dado ao jogador.

“A pena máxima por um crime no Brasil é 30 anos. Eu pago por aquele gol há 50…”

O último goleiro negro brasileiro titular em uma copa (Foto: UOL)

A discussão sobre o racismo entra forte nessa situação. Por causa desse lance, os goleiros negros passaram a ter sua capacidade questionada. Até hoje, vemos com muita raridade um goleiro negro vestir o uniforme da seleção brasileira e mais raro ainda ele ser titular. O último a começar um jogo de Copa do Mundo foi Dida, em 2006.

Vemos que a busca por um culpado não é algo recente. Trata-se de um reflexo da nossa sociedade, impaciente e necessitada de resultados imediatos. Percebemos esses traços não só no futebol, como também em diversas outras áreas. As políticas econômicas são um exemplo. Muitas delas se baseiam na necessidade do longo prazo.

A nossa sociedade curto-prazista faz com que elas sejam executadas de uma forma errada e não entregue os resultados esperados.

Quando essa impaciência é juntada com a incapacidade de reconhecer o bom trabalho alheio, conseguimos retratar de forma exata o motivo pelo qual certos jogadores são marcados como o motivo da eliminação em uma copa.

O time, por muitas vezes, só não é bom o suficiente para ganhar o mundial. A dor de assumir isso é maior do que o bom senso de não culpar um indivíduo por uma incapacidade coletiva.

--

--