O verdadeiro ponta-direita

A trajetória do menino acorrentado que etiquetava bananas e hoje é tetracampeão italiano

Gabriel Paes
O Contra-Ataque
11 min readJun 4, 2020

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É assim que o tetracampeão (consecutivo) da Itália comemora seus gols: pela mãe e pela memória do pai. (Foto: AFP)

“Vamos combinar uma brincadeira, tá? Toda vez que você ouvir esses barulhos horríveis, você corre pra baixo da cama que eles logo tratam de passar. Combinado?”

Às vezes alguns pais em periferias mundo afora precisam criar esse tipo de narrativa na cabeça dos filhos para que eles enfrentem o clima de uma guerra. Já imaginou como é isso? Parou pra pensar sobre como é dormir, acordar e até viver o dia todo sob o barulho de tiros? Para algumas crianças, isso é a realidade.

Carta de uma criança do Complexo da Maré, zona norte do Rio, para o Tribunal de Justiça pedindo o fim dos helicópteros da polícia que chegam atirando nas comunidades (Foto: Reprodução)

Para o pequeno Juan Cuadrado, a infância não foi diferente

Imagem de satélite mostra a localização de Necoclí (Imagem: Google Maps)

Ele e sua família moravam na cidade de Necoclí, na a Colômbia, a cerca 800 km da capital federal Bogotá. No início dos anos 1990, o local era um dos palcos da guerra entre forças paramilitares, narcotraficantes e as Forças Armadas, por ser muito próximo da fronteira com o Panamá. Estima-se que mais de 70% da população da região sofreu com a violência direta ou indiretamente. Apesar do cenário paradisíaco, o turismo não existia e o local era muito pobre.

Era comum que houvessem trocas de tiro entre os três grupos. Inocentes injustiçados perdiam a vida numa guerra sem fim sob a justificativa da pacificação. A guerra às drogas é, e sempre foi, falida.

Em uma das noites de intenso tiroteio no bairro em que vivia, a mãe do pequeno Juan, de 4 anos, o avisou de que era hora da brincadeira. O menino correu depressa para baixo da cama.

Depressa Juan, vá para o seu esconderijo. Eu e papai vamos nos esconder por aqui mesmo. Rápido!

Mas, naquela noite, a brincadeira não seria suficiente para explicar ao filho o que estava acontecendo. Quando saiu de baixo da cama, deu de cara com o pai, que na época era motorista de caminhão, ensanguentado no chão e sua mãe chorando ao lado dele.

“Seu pai tornou-se mais uma estatística da injustiça, mais um número nessa guerra de merda. Você nasceu numa vida difícil… e sabe melhor que qualquer um que ter talento não é o suficiente.”

Juan Diego Ramírez, amigo de infância de Juan, em carta aberta publicada no jornal El Espectador, da Colômbia.

Juan ao lado da mãe, Marcela, nos primeiros anos de vida. (Foto: Instagram/@cuadrado)

Sua mãe, Marcela Bello, assumia daquele dia em diante a responsabilidade de, sozinha, criar o filho sem que jamais lhe faltasse nada. A tarefa não era tão simples como assumir o papel de pai, coisa que anos depois um treinador chamado Gallego pôde fazer pelo menino Juan. Ela precisava ser mãe solteira — em meio ao maior conflito armado da América do Sul na época —e passou a trabalhar para garantir o ganha pão dela e do filho. Como empacotadora de bananas, profissão comum no país naquele momento, como descrito na literatura de Gabriel García Marquez, ela conseguiu entrar em um curso técnico e estudava à noite, quase sempre ao lado do filho nas aulas. Enquanto isso, tinha a ajuda de Juan, que era responsável por etiquetar as bananas já empacotadas — mas essa não era a vida que ele havia escolhido. E na falta de uma boa opção, havia ao menos para onde correr.

O pequeno Juan chamou sua avó, que ainda morava em Necoclí, dizendo que sua mãe não gostava dele, pois não o deixava jogar futebol. De fato, não é fácil criar um filho em meio à pobreza e nutrir o sonho de ser jogador de futebol, quando muito tempo, esforço e dinheiro são necessários para que pouquíssimos alcancem o status profissional e um número menor ainda consiga jogar em um time de ponta.

Ele foi morar com a avó para estudar, mas a história não foi diferente.

“Eu mandei ele pra escola mas ele voltava imundo depois de passar o dia todo jogando bola. Eu batia nele porque precisava puni-lo de algum jeito pela sujeira que ele era quando chegava em casa”

Marcela Guerreiro, avó de Cuadrado.

Que fofinha, nem parece que dava uma surra no rapaz desobediente. (Foto: Reprodução/Arquivo pessoal)

A história conta que, na tentativa de conter o menino, a avó o amarrava no quintal para que ele não fosse jogar bola — essa era a única vontade dele, a paixão que movia suas pernas desengonçadas. E então, para não viver amarrado, ele começou a jogar descalço e só de cueca. Mas isso aí só ele pode confirmar.

‘Cuando todo era un sueño’ (Foto: Instagram/Cuadrado)

Depois de muita luta e negociação familiar, conseguiu se matricular na escolinha Manchester Fútbol Club, em Aparadó, cidade próxima a Necoclí. Ganhou os apelidos de Brasileirinho, pela admiração pelo ídolo Ronaldo, e Baixinho, por ser muito miudinho. Daí pra frente, o garoto precisou crescer não só fisicamente, mas amadureceu para entender quem era, o que viveu, e que história iria escrever daqui pra frente. Chamou a atenção de um treinador, Nelson Gallego, que apadrinhou o menino e o formou nas categorias de base do futebol e o acompanhou dando a sua primeira chance no profissional.

“Ele tinha 12 anos quando o conheci e media apenas 1,35m. Pesava uns 40 quilos. Ele viveu comigo por anos e eu o ensinei a ser independente, a cuidar de suas coisas, a cozinhar, estudar, tudo o que foi preciso”

Nelson Gallego, para o jornal The Guardian, do Reino Unido.

Daqui até a estreia no profissional, pelo Independiente Medellín, ele chegou a viajar para a Argentina e até para a Europa, e disputou a segunda divisão colombiana. Quando conquistou de fato uma vaga no futebol da elite do país, sua carreira explodiu.

Gallego começou a trabalhar no Independiente e logo levou o ‘afilhado’ Juan Cuadrado para jogar na equipe do treinador Santiago Escobar, o irmão do zagueiro Andrés Escobar, assassinado dias depois de marcar o gol contra que eliminou a Colômbia da Copa do Mundo de 1994.

O primeiro gol profissional de Cuadrado. Saiu desfilando e mandou o foguete.

Com um pouco mais de massa, o recuaram para o meio campo e trocaram seu apelido para Garrincha, por conta das pernas meio tortas e das maluquices que inventava para driblar. Sua principal característica sempre foi o fôlego incomparável, que o tornou um dos maiores jogadores ‘box-to-box’ em atividade.

No fim da temporada, a grande recompensa: se mudaria para Itália para jogar pela Udinese

“Eu não esperava. É um passo muito importante sair da Colômbia e tô muito feliz por realizar um sonho de criança: jogar na Europa. Mas estarei sempre perto de meus amigos, da minha família e dos ‘profs’”

A vida na Europa

Quem não toparia uma chance como essa na carreira? Como a gente tá cansado de ver, muitos jovens sul-americanos abandonam cedo seus clubes de formação e saem de seus países de origem rumo à Europa, que sempre despeja um caminhão de dinheiro para levar nossas jóias. O problema é esse: desde os anos 1990, há um movimento em massa de mercantilização do futebol. Para ser mais claro, atletas são oportunidades de negócio.

Mesmo sendo vistos como cifras, não deixa de ser um negócio interessante para eles também. Imagine só viver anos com muito pouco e de repente te oferecem em um ano o que sua família não ganhou durante a vida inteira. Tentador é pouco. É normal que os atletas precisem de um tempo de adaptação e, logo que chegam ao clube, são repassados para equipes menores para ganhar corpo, força, entender como funciona o futebol naquele país e naquele continente.

Na temporada 2009/10 na Udinese, foram 42 partidas: em 12, sequer foi relacionado; em outras 18, ficou no banco; entrou em campo por alguns minutos em mais 8 e foi titular apenas em 4. Este cenário é extremamente comum. Na temporada seguinte, foi emprestado ao Lecce, onde jogou quase todas as partidas do time e foi importante no esquema tático, apesar do rebaixamento da equipe. Suas atuações despertaram o interesse da Fiorentina, que resolveu apostar.

O jogador acertou as rédeas da carreira em Florença, com apenas 24 anos. (Foto: GettyImages)

La Viola foi importante na carreira do craque não só por lhe dar oportunidades (era titular e foi poupado em apenas dois jogos na temporada), ou pela importância que ele teve na campanha do 4° lugar na Serie A em 2012/13. Foi importante porque seu desejo era estar com a mãe e ambos estavam muito felizes morando juntos.

Cuadrado e a irmã pequena, no aniversário da mãe Marcela. (Foto: Instagram/@cuadrado)

Soa clichê, eu sei. Afinal, quem não estaria feliz numa situação dessas? Mas a história dessa família é diferente. Eles não simplesmente enriqueceram da noite pro dia para que a mãe pudesse desfilar com roupas da Versace enquanto o filho desfilava pelos gramados italianos. Marcela topou se mudar para lá pois ambos tocariam suas vidas na Itália a partir de então. Juan aprendeu italiano em seis meses de Udinese e sua mãe não se contentou em ser apenas um amuleto decorativo, ela foi atrás de estudar e aumentou a família, que antes era dupla, dando uma irmã ao meia.

O tempo passou, Cuadrado disputou mais de 100 jogos com a camisa da Fiorentina e entrou no radar de Mourinho que, como sempre, arregaçou os cofres do Chelsea e gastou mais de 100 milhões de euros em contratações na janela do meio de temporada (2014/15) — só o contrato de Cuadrado girou em torno dos 31 milhões de euros.

Não foi uma temporada com jogos e atuações brilhantes. O atleta terminou com apenas uma partida como titular, contra o PAOK, da Grécia

Havia um contraste nos discursos de quem mais mandava na vida do craque: seu treinador ou sua mãe. Ela tem um apelo grande nas decisões de sua carreira e ficou incomodada com os rumores durante as negociações com o Chelsea. Ela estava muito adaptada em Florença, estudava e tinha a filha pequena para criar. Enquanto o atleta se mudava para Londres, ela resolver permanecer na Itália orando pela sua volta.

“Ele precisa de tempo. Eu sei que é diferente o futebol na Itália e na Inglaterra. É diferente jogar na Fiorentina e jogar no Chelsea. O clube e eu estamos prontos para lhe dar tempo e ele também está pronto para se adaptar nesse tempo. Acho que podemos esperar muito dele na próxima temporada”

José Mourinho

“Ele continua a sorrir, mas eu vi que tinha alguma coisa ali. Foi um período difícil para ele, o mais duro em toda a sua carreira. Quando chegou o verão, eu rezava todos os dias para ele voltar. Eu sabia que ele retornaria”

Marcela Bello

Em pouco mais de seis meses de Chelsea, o jogador foi emprestado para a Juventus no início da temporada 2015/16 e, depois de dar certo no clube, teve seu empréstimo prorrogado até sua compra em definitivo, em maio de 2017.

A (segunda) geração de ouro colombiana

A primeira convocação de Cuadrado foi em 2010, logo após a Copa do Mundo na África do Sul, e nessa mesma época se formava a segunda geração de ouro colombiana, que encantaria o mundo anos mais tarde — mesmo permanecendo no quase.

Todos estavam sedentos para ver as novas estrelas jovens da Colômbia numa Copa do Mundo. E coube a José Pekerman a missão de levá-los ao primeiro torneio desde 1998, na França. Quando assumiu, em 2012, elevou Cuadrado ao status de titular absoluto, o transformou em um dos pilares do time — que tinha James na outra ponta e Falcão García de centroavante — e chegou a marcar o gol de empate contra o Brasil em amistoso no mesmo ano.

Pekerman dá instruções a Cuadrado durante a Copa do Mundo de 2014, disputada no Brasil. (Foto: Jamie Squire/Getty Images South America)

A Colômbia se classificou para a Copa no Brasil e, de igual para igual, disputaram conosco uma vaga nas semis da competição. Uma evolução incrível do time que tem Cuadrado como um pilar, um corredor, um marcador, um goleador… chame-o como quiser. O homem é brabo demais — é o 8° atleta com mais jogos pela seleção, à frente de James Rodríguez e com um a menos que Freddy Rincón.

A frustração em 2014 só não foi maior que em 2018, quando caíram nas oitavas, por pênaltis, contra a Inglaterra. Mas nem a eliminação precoce foi suficiente para desanimar o povo colombiano, que pode esperar muito de um time ainda mais maduro, experiente e técnico em 2022, quando terá a grande chance da geração pela frente.

Más bienaventurado es dar que recibir

Cuadrado passa a camisa número 7 para Cristiano Ronaldo e volta a usar o número 16, de quando chegou ao clube (Foto: Reprodução/Twitter)

“Mais bem aventurado é dar do que receber”. Essas foram as palavras que Cuadrado usou quando postou a foto segurando a camisa número 7 de Cristiano Ronaldo, que acabara de chegar ao clube. Muito se especulou sobre como ele, titular na Juventus, reagiria uma vez que usa a 7 há tempos em Turim. O atleta não deu importância e seguiu em frente com a 16, número que utilizou logo quando chegou à Juve.

“Minhas campeãs que estão comigo sempre, a todo momento. As amo” (Foto: Instagram/@cuadrado)

Cuadrado é muito mais que um jogador de futebol. Não só levou sua mãe, sua família até então, para morar com ele, como garantiu que ela pudesse ter escolhas na vida, como estudar e aumentar a família, assim como ela deu a ele durante toda a vida a base emocional que ele precisou até que encontrasse a sua própria família. Mesmo assim, os dois jamais se desgrudaram — e ganharam a companhia da irmã, que pelo esforço dos dois cresceu em condições incomparavelmente melhores. Com o poder de fazer escolhas e seguir seus sonhos, desde o nascimento.

É lindo de ver

Cuadrado ainda criou a Fundação Juan Cuadrado, um projeto social que ensina futebol para crianças, meninos e meninas de regiões periféricas, em Medellín. A fundação atua fortemente com princípios bíblicos, uma vez que Juan e sua mãe são muito religiosos.

E se tem uma coisa que essa família ensina pra gente, é humildade e jogo de cintura. Marcela Bello criou o filho para ser forte e espetacular assim como ela é. Em 2018, no Dia das Mães, ela se juntou com a mãe de Dybala e o chef Davide Scabin para dar um show de italiano e de culinária.

Termino com essa colagem fofíssima que o craque fez para sua família. Nada melhor do que esse vídeo para expressar a origem do craque, o verdadeiro ponta-direita.

O texto faz parte da série “Los ricos de la pobreza”, aqui n’O Contra-Ataque, que conta a origem de jogadores latino-americanos.

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Gabriel Paes
O Contra-Ataque

Cultivo especial aversão ao homem-de-bem, à família tradicional e ao Brasil que deu certo.