Restrição contra o futebol nas altitudes andinas fez Evo peitar a Fifa e o Flamengo

Controvérsia sobre a altitude se abriu após Flamengo passar sufoco em Potosí em jogo válido pela Copa Libertadores de 2007

O Contra-Ataque
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9 min readApr 9, 2021

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Evo subiu até o Sajama para jogar futebol sob baixo oxigênio em protesto contra a Fifa. Dado Galdieri/AP

Texto escrito por Henrique Sales Barros

Entre 2007 e 2008, Evo Morales, então presidente da Bolívia, travou oposição contra uma medida da Fifa (Federação Internacional de Futebol) que restringia a prática do futebol em diversas localidades da América Andina, rivalizando não só com a entidade como também com o Flamengo.

A questão começou a se desenhar quando, em meados de fevereiro de 2007, o clube carioca visitou o boliviano Real Potosí, clube da cidade de Potosí, a segunda mais alta com mais de 100 mil habitantes no mundo, a 4 mil metros acima do nível do mar, em partida válida pela fase de grupos da Copa Libertadores daquele ano.

O jogo, que terminou em 2 a 2, ficou marcado por Renato Augusto, então jogador do Flamengo, precisando de oxigênio na beira do gramado e pelo goleiro Bruno, já sem fôlego para cobrar um tiro de meta, necessitando de atendimento médico. Ao fim da partida, o zagueiro Moisés chegou a apresentar um quadro de hipotermia — fazia cerca de 2º C naquela noite.

Altitude de Potosí fez Renato Augusto sentir mal-estar. Alexandre Cassiano

A condição que deixou os jogadores do Flamengo exaustos na Bolívia se chama hipobaropatia. Também conhecida como mal da montanha, a patologia acomete pessoas em situações como a dos brasileiros, acostumados com a altitude praticamente zerada do Rio de Janeiro e que se deslocam para lugares montanhosos, como Potosí.

Pessoas não aclimatadas com a altitude “apresentam falta de ar, aumento da frequência cardíaca e cansaço fácil” ao chegarem em lugares montanhosos, explica o médico ortopedista Adriano Leonardi em artigo no portal Eu Atleta. “Aproximadamente 20% delas também apresentam cefaleia, náusea ou vômito e distúrbios do sono”, completa.

No dia seguinte ao jogo, o Flamengo, em nota assinada por Márcio Braga, então presidente do clube, disse que a equipe da Gávea não jogaria mais em altitudes demasiadamente elevadas e cobrou medidas da Fifa e da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). “Não proibir jogos nessas condições é o mesmo que ser conivente com a dopagem”, disparou.

Cerca de três meses depois, no fim de maio, a Fifa resolveu acatar uma recomendação do Comitê Médico da entidade, que pedia a adoção de um limite de altitude para a disputa de partidas, e anunciou a proibição da realização de jogos sob a alçada da entidade, como as eliminatórias para as Copas do Mundo, a 2,5 mil metros ou mais acima do nível do mar.

O veto pegou em cheio a Bolívia, cuja capital, La Paz, estava a 3,6 mil metros de altitude. Quito, capital do Equador, se localizava a 2,8 mil metros acima do nível do mar. Cusco, no Peru, estava a 3,3 mil metros. Na risca da faca, Bogotá, capital da Colômbia, se encontrava a 2,6 mil metros de altitude.

Reação contra o veto

Com o veto imposto, Evo Morales entrou em cena e tratou de traçar uma estratégia contra a medida já no dia seguinte ao anúncio, quando convocou uma reunião com ministros e cartolas. “Este não é um veto somente à Bolívia, e sim um veto à universalidade do esporte”, disse o então presidente boliviano após o encontro, segundo registro da agência Reuters.

Nos dias seguintes à reunião, o então presidente boliviano enviou uma delegação do governo à Suíça com o intuito de dialogar com a Fifa, patrocinou a organização de uma cúpula no país sobre a universalidade do esporte e, em junho, foi até alguns dos pontos mais altos da Bolívia para jogar partidas sob baixo oxigênio em protesto contra a medida.

No Sajama, pico mais alto da Bolívia, a 6,5 mil metros de altitude, Evo disputou uma partida de cerca de 20 minutos contra montanhistas em um campo assentado sobre um terreno irregular, nevado e rochoso. “O esporte deve ser praticado em qualquer lugar”, disse o então presidente boliviano na ocasião, em registro da agência Associated Press.

A campanha contra o veto também movimentou alguns dos principais meios de comunicação da Bolívia, como o jornal La Razón e a rede de televisão ATB, de La Paz, e também o periódico El Día, de Santa Cruz de la Sierra. Impulsionados por Evo, os veículos lançaram a campanha Bolivia Unida y con Altura (Bolívia Unida e com Altura).

O objetivo da campanha era obter um milhão de cartas em protesto contra o veto, que seriam enviadas para Zurique para sensibilizar a Fifa junto com uma carta principal, elaborada pelos próprios veículos. Na mensagem, se destacava, entre outras questões, uma frase dita por Joseph Blatter, então presidente da entidade, em visita à Bolívia alguns anos antes.

“Em 11 de fevereiro de 2000, você, senhor Blatter, expressou em La Paz seu respeito por nossa causa. Então, disse: ‘Eu nasci entre as montanhas, meu povo na Suíça está entre os picos mais altos da Europa, por isso a altitude não me dá medo’. Vai cumprir sua palavra?”

Recuo e regressão

Com a pressão vinda da Bolívia e de outros países andinos — a Colômbia ameaçava boicotar as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2010 — , a Conmebol decidiu se posicionar contra o veto e pedir que a Fifa revertesse-o e aguardasse mais estudos sobre o tema da altitude.

Sob críticas, a Fifa decidiu, entre o fim de junho e meados de julho, aumentar o limite para 3 mil metros de altitude e autorizar que a Bolívia disputasse em La Paz as eliminatórias para o Mundial da África do Sul — e esta seria a última vez que os bolivianos poderiam disputar um qualificatório para uma Copa na capital, segundo a entidade.

As eliminatórias para a Copa começaram três meses depois do recuo da Fifa, em meados de outubro. Em 2007, a Bolívia disputou quatro jogos pelo qualificatório, sendo que o empate em 0 a 0 com a Colômbia foi o único em La Paz. Nas outras três partidas, os bolivianos foram derrotados fora de casa para o Uruguai (5 a 0), a Argentina (3 a 0) e a Venezuela (5 a 3).

Empate com a Colômbia valeu pela segunda rodada das eliminatórias. El Tiempo

Mas enquanto a Bolívia viajava pela América do Sul, o Comitê Médico da Fifa realizava um simpósio sobre condições climáticas extremas e como estas impactavam no futebol, em que se falou não só das altitudes andinas como também da elevada umidade do Sudeste Asiático, o escaldante calor do Oriente Médio, o congelante frio da Europa Oriental, entre outros cenários.

Do encontro, saiu um relatório que se tornaria público em meados de dezembro, durante uma reunião do Comitê Executivo da Fifa. Agora, o recomendado era que nenhuma partida fosse disputada a mais de 2,7 mil metros de altitude sem um período de aclimatação da equipe visitante, o que foi aceito pela entidade. Os seguintes critérios foram estabelecidos:

  • Entre 2,5 mil e 2,7 mil metros: Período de aclimatação de três dias. Altamente recomendado, mas não obrigatório. Bogotá afetada;
  • Entre 2,7 mil e 3 mil metros: Período de aclimatação de uma semana. Obrigatório. Quito afetada;
  • Acima de 3 mil metros: Com exceção de um período de aclimatação de pelo menos duas semanas, os jogos estavam proibidos. La Paz, Cuzco e Potosí afetadas.

Até mesmo a exceção dada à Bolívia, que permitia que a seleção jogasse em La Paz para buscar uma vaga para o Mundial da África do Sul, caiu. A Fifa também sugeriu à Conmebol que os limites fossem estabelecidos nas competições de clubes da entidade — no caso, a Copa Libertadores e a Copa Sul-Americana — , o que foi rejeitado pela confederação.

Retorno brasileiro

O fato da Fifa recomendar a adoção do limite para a Conmebol trouxe novamente o Flamengo, classificado para a Libertadores de 2008, para a discussão. Agora, o Cienciano, de Cusco, que poderia entrar no caminho da equipe da Gávea na fase de grupos caso vencesse o uruguaio Montevideo Wanderers na primeira fase do torneio, estava na mira.

“Se esse time (Cienciano) se classificar, ele vai ter que jogar na cidade de Lima”, disse Márcio Braga no fim de dezembro de 2007, em registro da Gazeta Esportiva. O então vice-presidente de futebol do Flamengo, Kléber Leite, foi ainda mais longe, ameaçando não colocar o clube carioca em campo em um possível confronto contra a equipe de Cusco.

Já em meados de janeiro de 2008, logo após tomar conhecimento pela imprensa de que Evo havia telefonado para Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do Brasil, pedindo apoio contra as restrições impostas pela Fifa, Márcio Braga emitiu carta pública cobrando responsabilidade do petista.

Na mensagem, Braga resgatou o episódio do desmaio de Tarso Genro, então ministro da Justiça do Brasil, durante uma cerimônia ocorrida em meados de dezembro em La Paz. Na época, ao G1, o médico de Lula, Cléber Araújo, disse que o gaúcho teve uma queda de pressão potencializada pela elevada altitude da capital boliviana.

“Ora, imagine os efeitos dessas condições extremas aos atletas em plena atividade física”, afirmou Braga, que, naquele mês, ainda protocolou uma representação na Fifa contra a Conmebol e cobrou apoio da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) na empreitada contra os jogos de Libertadores em altitudes elevadas.

Após desmaio, Tarso Genro voltou ao Brasil de madrugada em um avião da Força Aérea. Javier Mamani/AFP

Clamor por Deus

Em meados de março de 2008, atendendo aos pedidos de Evo, o ex-jogador argentino Diego Armando Maradona viajou à La Paz para disputar um amistoso que serviria tanto para arrecadar fundos para famílias afetadas por fortes chuvas que haviam devastado a Bolívia como para protestar contra o veto da Fifa.

“Antes de [Evo] ser presidente, quando estávamos na Alba (Alternativa Bolivariana para a América), contra a Alca (Área de Livre-Comércio das Américas), contra o assassino [George] Bush (ex-presidente dos Estados Unidos), disse a ele para que contasse comigo, quando for”, disse Maradona em entrevista coletiva no dia anterior ao amistoso, segundo registro da AFP.

No dia da partida, em discurso, Maradona disse não temer a altitude e afirmou que “nem Deus e muito menos Blatter” poderiam proibir alguém de jogar onde nasceu. Ao lado de outros ex-jogadores argentinos, como Matías Almeyda e Diego Latorre, contra um combinado com ex-selecionados da Bolívia de 1994, a equipe do Pibe venceu por 7 a 4.

Amistoso no Hernando Siles em protesto contra a Fifa teve três gols de Maradona. Aizar Raldes/AFP

Ao fim do amistoso, restava um intervalo de cerca de três meses, até meados de junho, quando a Bolívia voltaria a campo pelas eliminatórias e enfrentaria o Chile como mandante — e, em sinal de apoio aos bolivianos, a FFCh (Federação de Futebol do Chile) disse que, mesmo com o veto, gostaria de disputar o jogo na capital boliviana.

Posição contrária, porém, tomou a CBF, indo no inverso de toda a comunidade sul-americana. Cobrado pelo Flamengo e por outros clubes brasileiros, o presidente da entidade na época, Ricardo Teixeira, não assinou, no início de abril, um documento da Conmebol direcionado à Fifa que pedia a revisão da proibição imposta em dezembro.

Mas a pressão da comunidade andina e dos demais países sul-americanos misturada com a proximidade da volta das eliminatórias era maior que a da CBF e do Flamengo — e, assim, no fim de maio de 2008, durante o Congresso Executivo da Fifa, a proibição foi suspensa sob a alegação de se esperar mais estudos sobre os efeitos das altitudes elevadas no futebol.

“Permitiremos jogos na altitude de La Paz de forma provisória, mas vamos reabrir o debate para continuar analisando a situação”, disse Blatter na ocasião, em registro da AFP. A discussão, porém, não entrou mais na pauta da entidade, e os Andes seguem, até hoje, livres de qualquer tipo de restrição — seja de Deus, seja da Fifa.

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