“Se tocam um, cem se levantam”: um mês do assassinato de Neco, hincha colocolino, pelo Estado

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O Contra-Ataque
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9 min readFeb 28, 2020

Jorge Mora Herrera, 37 anos, foi atropelado por um caminhão de Carabineros nos arredores do Monumental na noite do dia 28 de janeiro de 2020

Fotografia: Sebastián Flores/The Clinic

No começo de fevereiro deste ano, quem acompanhou a partida entre Universidad do Chile e Internacional de Porto Alegre pela Copa Libertadores viu uma cena atípica no Estádio Nacional. A própria hinchada local ateou fogo em um canto inferior do Setor Sul.

Foto: Chile Okulto

Três dias antes, Los de Abajo (como é conhecida a torcida da La U) estenderam uma faixa com os dizeres: “com 90 minutos não taparão 30 anos de repressão”.

Eles se manifestavam contra a violência que a população chilena vem sofrendo durante a crise social que se instalou em outubro do ano passado e que é sistêmica desde os tempos da ditadura de Pinochet.

Naquele dia, a ação era em resposta a um caso específico: o assassinato de um hincha do Colo-Colo, seu maior rival.

Foto: Chile Okulto

Contexto chileno

No dia 14 de outubro de 2019, uma série de manifestações aconteceram em Santiago de Chile contra o aumento de 30 pesos na tarifa do metrô. Por toda a cidade, estudantes secundaristas e universitários convocaram a população a evadir o metrô — ou seja, passar pela catraca sem pagar.

As ações foram massivas ao longo dos próximos dias e no dia 18 de outubro Carabineros de Chile colocou uma imensa quantidade de oficiais dentro das estações.

Neste dia se deu o “estalo” do que viria a ser chamado pelos chilenos de “despertar”.

Em Estación Central, bairro do centro de Santiago, uma jovem foi baleada na perna por um oficial de Carabineros e a reação popular foi imediata. A desobediência civil, como saques a supermercados e barricadas, tomou as ruas e os confrontos com as forças policiais tornaram-se mais intensos.

Nos dois dias seguintes, o presidente Sebastian Piñera convocou os militares às ruas, decretou Estado de Emergência e as Forças Armadas definiram toque de queda das 22h às 7h da manhã.

Dia 20 de outubro, Piñera, presidente pelo partido Renovação Nacional, declara: “estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém e está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite”.

O inimigo poderoso? Estudantes.

Segundo a Anistia Internacional, desde o estalo social, são mais de 13 mil pessoas feridas e 2.500 denúncias de violação de Direitos Humanos. Já o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile (INDH), em um relatório do dia 18 de fevereiro de 2020, aponta para 3.765 pessoas feridas, 2.122 destas por disparos e 445 com feridas oculares.

O número de pessoas com feridas oculares é o mais alto da história em conflitos, superando os 154 lesionados em seis anos de confrontos entre Israel e Palestina. A quantidade de denúncias por violência sexual e tortura também são alarmantes. Confira no relatório.

A Anistia Internacional ainda constatou que esta é a pior crise de Direitos Humanos no Chile desde a ditadura. Alta-comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet (ex-presidenta do Chile) se posicionou de maneira discreta, pedindo que se “coloquem responsabilidades” sobre as violações de D.H.

Esse é um resumo breve de como explodiu a crise social no Chile, que há 30 anos dá sinais do esgotamento de seu regime neoliberal e da constituição elaborada em plena ditadura de Augusto Pinochet.

Ainda há muito que se falar.

E o futebol?

Em meio a desordem pública de outubro do ano passado, jogadores estavam sendo coagidos a se posicionarem publicamente sobre a crise e o temor pela segurança dentro dos estádios fez com que a Primera División fosse paralisada após confrontos entre torcedores e policiais.

Cerca de uma semana após o “estalo”, as torcidas de Universidad do Chile, Colo-Colo e Universidad Católica se uniram em um ato pacífico contra o governo de Sebastian Piñera. Os hinchas se articularam e se juntaram na Plaza Ñunoa, onde entoaram cantos e brandaram suas bandeiras.

Foi uma primeira demonstração que a insatisfação contra o regime neoliberal transcende os radicalismos constantemente citados para criticar as Barras Bravas. Apesar de toda a rivalidade, o clima foi de harmonia e de reivindicação nas ruas de Santiago.

Em novembro, a Asociación Nacional de Fútbol Profesional (ANFP) tentou retomar as atividades mas a partida entre Unión La Calera e Iquique foi suspensa após uma invasão de hinchas do Colo-Colo no Estádio Municipal La Florida.

É inevitável dissociar o que acontece fora dos gramados com o comportamento das Barra Bravas. A “normalização” — voltar a rotina — é combatida intensamente pelos manifestantes. Nas paredes de Santiago, se lê: “estávamos cegos e felizes, agora que enxergamos estamos descontentes”.

Eles não deixaram o futebol funcionar como pão e circo.

A final da Copa Libertadores 2019 que estava para ocorrer entre Flamengo e River Plate em Santiago foi transferida para Lima, no Peru, e os campeonatos da ANFP (Primera, Primera B, Primera Femenino e Segunda División) acabaram com algumas rodadas de antecedência, sem promover rebaixamento ou acesso entre as ligas.

As vagas para os torneios internacionais foram decididas posteriormente.

São quatro meses desde o início da crise e torcedores de inúmeras equipes seguem nas ruas de todo país protestando por melhores condições sociais e por uma nova constituição.

No ano novo, milhares de pessoas se fizeram presentes na antiga Plaza Itália, rebatizada Plaza Dignidad pelos manifestantes.

O ato massivo deixou claro para todas e todos que a crise não iria se resolver apenas com o afastamento de alguns funcionários do governo. A impunidade nas Forças Armadas e a falta de legitimidade da classe política são pautas base das mobilizações que seguem ocorrendo em território chileno.

Foto: La Discusión.

Mais tarde em janeiro de 2020, na adiada semifinal da Copa Chile, as barras bravas de Colo-Colo e Universidad Católica cantaram juntas: “Piñera, conchetumadre. Asesino, igual que Pinochet” — em alusão ao ex-ditador do regime que assassinou mais de 3 mil pessoas.

Na final do torneio, dia 22 de janeiro de 2020, no clássico entre Universidad de Chile e Colo-Colo, as torcidas caminharam harmoniosamente nos arredores do estádio German Becker, em Temuco, mesmo após a 12ª conquista colocolina da Copa.

Menos de uma semana depois, o Cacique voltou à campo em casa, no Monumental, pela estreia da Primera División 2020. Confiante com o título sobre a rival La U, venceu o Palestino com um contundente 3 a 0.

Seria mais uma noite de comemoração, se não fosse pelo assassinato do hincha Jorge Mora Herrera.

Neco, presente.

Fotografia: Sebastián Flores/The Clinic

Jorge Mora Herrera, 37 anos, vivia na comuna de Pudahuel Sur (periferia de Santiago), era pai, marido, filho, tatuador e sócio albo. Parte da Filial 19 de abril da Garra Blanca — barra brava do Colo-Colo, era um dos mais ativos nas reuniões do clube e era ativista contra a Blanco y Negro S.A., sociedade anônima que administra o Club Social y Deportivo Colo-Colo.

“Neco”, como ficou conhecido por amigos e familiares, morreu após ser atropelado por um caminhão de Carabineros que transportava a cavalaria da instituição, na esquina da avenida Departamental com a rua Exequiel Fernández, nos arredores do estádio Monumental.

No momento do atropelamento, torcedores do Colo-Colo confrontavam-se com oficiais que faziam uma operação nos arredores do estádio.

Rosa García, sua companheira, contou ao periódico The Clinic que: “quando cruzamos [a avenida] Departamental, me toquei que, desde o oeste, vinha um caminhão de Carabineros em grande velocidade, esquivei e ele virou ao norte, momento em que senti um golpe forte e alguém gritou ‘homem caído’. Me virei e vi que Jorge, meu companheiro, estava estirado no chão com a boca para baixo”.

Logo após o ocorrido, o pai de Neco comentou à Rádio Cooperativa que “não foi um acidente, ele (o motorista) tinha que ter parado. Chegou e mirou onde estavam as pessoas, está gravado. Espero a justiça”.

Após o atropelamento, Carabineros não prestou socorro, seguiu atirando água com o “guanaco” (caminhão d’água) e atirou bombas de gás lacrimogênio no local.

Aqui está o vídeo do momento do choque. Alerta de imagens sensíveis.

O Colo-Colo se posicionou pelo Instagram pontuando a desproporção da ação de Carabineros nos arredores do Monumental naquela noite e ressaltando o caráter popular das reivindicações.

Em entrevista coletiva, Edmundo Valladares, presidente do Colo, lembrou de outros casos de violência contra civis e torcedores colocolinos. Jogadores como Estebán Paredes, Óscar Opazo, Gabriel Suazo e Iván Morales também se posicionaram nas redes sociais.

Neco teve um enterro digno de ídolo. Centenas de pessoas estiveram presente no cortejo fúnebre que saiu do bairro onde vivia, Pudahuel Sur, até o cemitério Parque del Sendero de Maipú. Família, amigos, conhecidos e desconhecidos de Neco fizeram do trajeto uma homenagem que ficará na memória.

Fotografia: Sebastián Flores/The Clinic

Justiça e Memória

O cabo Carlos Martínez foi formalmente acusado por homicídio culposo — sem intenção de matar. A investigação tem um prazo de 90 dias até ter um julgamento final. Até lá, o acusado está em descanso semanal remunerado. Martínez argumentou que estavam atirando pedras contra o caminhão e não enxergava direito.

O caso está no 14º juzgado de garantía de Santiago. A juíza responsável pelo caso, Andrea Acevedo, negou o pedido de prisão domiciliar para o acusado e deu declarações polêmicas no tribunal. Uma delas questionando o “estado etílico” de Neco na noite do ocorrido.

O The Clinic fez uma seleção de 10 frases, aqui vou deixar apenas a primeira.

“Estamos frente um acontecimento que ocorre após um encontro esportivo, entre duas equipes de futebol. Uma delas tem, desgraçadamente, uma carga histórica que não faz nenhuma contribuição para o esporte, que é o Colo-Colo, que tem sua famosa Garra Blanca [torcida organizada] que, por desgraça, seus torcedores, ou assim chamados, têm uma atitude não muito de acordo com as regras sociais e ao Estado de Direito em geral”.

A Associação de Magistrados se posicionou através de sua diretora, Soledad Piñeiro, que repudiou as falas de Acevedo: “não é admissível que juízes utilizem preconceitos nem avaliações políticas, culturais ou sociais pessoais — que não sejam possíveis desvincular dos antecedentes do fato — para resolver o que foi submetido ao seu conhecimento”.

Neco entra numa galeria extensa de pessoas que foram assassinadas por agentes do Estado. Os colocolinos não vão esquecer seu nome, que seguirá escrito em camisetas, faixas e bandeiras junto de outros que caíram. O Cacique é o clube mais popular do Chile e tem a história ao seu lado. O povo chileno também.

Aqui o texto dos Antifascistas da Garra Blanca no Facebook no dia do assassinato de Neco.

“Se sua mensagem é que nos podem assassinar gratuitamente, te dizemos que aqui não temos medo de morrer e há mais sede de justiça. Com o povo Albo não há volta atrás.

Se tocam em um, cem se levantam”.

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