Sem minha torcida eu não consigo

O Contra-Ataque
O Contra-Ataque
Published in
6 min readJul 14, 2020

Com o ‘12º jogador’ em casa, equipes mandantes têm sido superadas mais facilmente pelas visitantes na volta do futebol

Fotos de torcedores, jogadores e demais funcionários do Monchengladbach preenchem as arquibancadas vazias do Borussia-Park (Christian Verheyen)

Texto escrito por Henrique Sales Barros e Sofia Aguiar

O retorno dos campeonatos de futebol na Ásia e na Europa, que estavam paralisados desde a segunda metade de fevereiro e a primeira metade de março devido à pandemia do novo coronavírus, mostrou a importância dos torcedores nos estádios, hoje ausentes a fim de conter a disseminação da doença, para o desempenho dos jogadores.

No Campeonato Alemão, que retornou em 16 de maio, sem a presença da torcida, e foi encerrado no fim de junho com o octacampeonato do Bayern de Munique, 83 jogos foram disputados com portões fechados desde 11 de março quando, ainda antes da paralisação, Borussia Monchengladbach e Colônia se enfrentaram com as arquibancadas vazias.

Nestas partidas, as equipes conquistaram um total de 100 pontos jogando como mandantes, enquanto como visitantes angariaram 130. Já nos 83 jogos anteriores, com os torcedores presentes nas arquibancadas, a balança inverte: 121 pontos foram adquiridos pelos times da casa, enquanto 109 foram pelos de fora.

Situação semelhante acontece no Campeonato Sul-Coreano, um dos primeiros a ter bola rolando no mundo em meio à pandemia, no dia 8 de maio, e que já se encontra na 11º rodada.

Nesta altura do campeonato na temporada passada (2019), apenas 39% dos pontos que as equipes angariaram no torneio haviam sido conquistados fora de casa — 71, no total. Já na atual edição da liga (2020), essa porcentagem sobe para 50% cravados — 91, no total.

Para Murilo Calafange, psicólogo especializado na área esportiva e associado da Abrapesp (Associação Brasileira de Psicologia do Esporte), o papel da torcida mandante vai além do apoio à equipe da casa e envolve também a desestabilização do atleta adversário — e, quando ela está ausente, o time visitante se vê menos pressionado psicologicamente.

“[Isso acontece] quando, por exemplo, ele (jogador visitante) pega na bola e há uma enxurrada de vaias, xingamentos e até aplausos quando ele erra. Essa dinâmica funciona quando o jogador está despreparado psicologicamente para atuar, então se eu vou jogar em um campo adversário e não tenho esta interferência, acredito que seja um problema a menos para me preocupar”, afirma.

Barcelona tem jogado no monumental Camp Nou com os portões fechados (Lluis Gene/AFP)

Um espetáculo de plateia vazia

Para Calafange, “o futebol é um espetáculo midiático e coletivo” em que o atleta, desde as categorias de base, possui uma relação íntima com sua torcida — relação esta que, com a proibição do público nos estádios, está em crise.

“É muito comum, nos discursos dos jogadores, que [eles digam que] tudo que eles fazem é dirigido para o grupo e para as torcidas, e esta relação envolve muitas dinâmicas. Podemos falar de muitos aspectos emocionais envolvidos: alegrias, tristezas, pressão pelo resultado, cobrança, frustração, rejeição, acolhimento, ódio etc”, pontua.

“Tem jogador que rende mais quando percebe que existe, por parte da torcida, um apoio, um aplauso, um canto. E se sai o gol então? Logo a admiração da torcida e todo o seu comportamento positivo em relação a este jogador servem como reforço positivo”, acrescenta.

Ex-Bahia e Palmeiras, o atacante Adriano Michael Jackson, que atualmente joga no FC Seoul, da Coreia do Sul, relata estar sendo “muito estranho” jogar com as arquibancadas vazias. Até o momento, seu clube, que está na vice-lanterna do campeonato, disputou cinco jogos em casa, vencendo apenas dois deles e perdendo os outros três.

Adriano Michael Jackson (com a camisa 11) relata desconforto com arquibancadas vazias quando joga em casa (Lee Sang-hack/Yonhap/AP)

“Nos últimos dias, jogar dentro de casa parece jogar fora de casa. Abala muito, é bem complicado. Parece que estamos em um amistoso que não vale nada”, diz.

“A gente tá acostumado a jogar com a torcida a nosso favor e aí vir jogar
dentro de casa sem torcida, sem aquela pressão dos gritos da galera, afeta muito. A gente que é jogador tá acostumado a jogar com a nossa torcida, e agora fica muito estranho”, completa.

Onze + Um

No futebol, é possível mensurar a importância da torcedor por meio de um número: o 12. É um mantra no esporte dizer que o aficionado é o ‘12º jogador’ que, junto aos 11 em campo, empurra o time para a vitória em seus domínios.

No Bayern de Munique e no Flamengo, como homenagem, o número é aposentado e nenhum jogador pode utilizá-lo. Na Argentina, a barra brava do Boca Juniors arroga para si o título de ‘La 12’.

Para Marina Dantas, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e pesquisadora do GeFuT (Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas), “o futebol com torcida e sem torcida acabam sendo jogos diferentes” e “esse papo que ouvimos que ‘a torcida é o 12º jogador em campo’ realmente tem seu sentido”.

“Esse ‘12º jogador’, que é múltiplo e diverso, tem impacto no decorrer do jogo, dentro do estádio, no clima ao redor do estádio, então por isso assistir um jogo sem torcida traz um estranhamento tão grande, porque é um elemento que tá ali e a gente acostumou a ver sempre”, diz.

“Só quando a gente vê o peso que a ausência dessa torcida traz que a gente para pra pensar nessas questões. A importância da torcida vem por causa disso. Ela altera totalmente o clima, ela faz parte do jogo”, conclui.

Uma caricatura do futebol

Tentativas de simular a experiência das arquibancadas lotadas foram realizadas na Alemanha, onde o Borussia Monchengladbach criou uma ‘torcida de papelão’ no Borussia-Park, estádio do clube, e reproduziu cânticos dos Fohlenfans nos megafones nos dias de jogos.

Na Espanha, a LFP (La Liga, na sigla em português), que organiza o Campeonato Espanhol, foi mais longe ao pensar no torcedor que se sente desconfortável em ver o estádio vazio pela TV e firmou uma parceria com a empresa norueguesa Virzt em que foi acordada a reprodução de uma arquibancada virtual, que pode ser visualizada por quem assiste às partidas de casa.

Reprodução de arquibancada virtual em jogos do Campeonato Espanhol foi fechada com empresa norueguesa (Reprodução/La Liga)

Marina Dantas não crê que medidas como as adotadas no Borussia-Park e no Campeonato Espanhol possam suprir o desconforto causado pela ausência da torcida seja para quem é atleta, seja para quem acompanha o jogo pela TV.

“Essa coisa de torcida sintética, eu não sei até que ponto ela pode tornar a experiência mais palatável ou não, mas eu tendo a pensar que essa sensação de estar substituindo algo que é uma experiência muito arraigada no cotidiano do torcedor por uma coisa fake pode soar muito mais pra esse lado do fake do que do conforto”, afirma.

Psicólogo!? Quem!?

Aos poucos, os campeonatos estaduais estão voltando Brasil afora. Carioca, Catarinense e Cearense já retornaram e há previsão de ter bola rolando no Paulista no dia 22 de julho. Já o Campeonato Brasileiro deve ser iniciado em 8 de agosto.

Para Calafange, é hora dos psicólogos dos clubes brasileiros agirem e entenderem qual relação seus atletas possuem com seus torcedores e de que forma as arquibancadas vazias podem afetar seu desempenho em campo para que o chamado ‘fator casa’ não seja perdido.

“Uma estratégia seria justamente ouvir dos atletas sobre o que eles sentem quando jogam nesta situação. Quais são as questões emocionais que eles vivenciam durante uma partida sem torcida? Quais as táticas mentais que utilizam?”, pontua.

“Mas quantos clubes no Brasil contam com o trabalho da psicologia em suas comissões técnicas? Quantos oferecem este serviço no profissional?”, pergunta retoricamente. “São pouquíssimos”, diz.

Segundo levantamento feito em abril pela ESPN Brasil, dos 20 clubes da Série A do Brasileirão, apenas oito declararam estar oferecendo apoio psicológico aos atletas do time profissional durante o período de paralisação, sendo eles: Atlético Goianiense, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Fortaleza, Red Bull Bragantino, São Paulo e Vasco.

“É uma questão que acho preocupante porque vão exigir dos atletas este equilíbrio emocional e não existe o profissional que possui as competências necessárias para assumir as demandas psicológicas da equipe. É uma pena”, lamenta.

--

--