Cultura da Interface e Diablo III

O Curioso Mundo de Camis
O Curioso Mundo de Camis
8 min readDec 15, 2018

(Capítulo extraído do meu artigo “Cultura da Interface nos Jogos Digitais: simultaneidade e memória no Diablo III” apresentado no SBGames 2018, trilha Cultura, sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Daudt Fischer)

Figura 1: Da esqueda para direita: Diablo I, Diablo III e Diablo II respectivamente. Fonte: Deviant Art <https://www.deviantart.com/holyknight3000/art/Diablo-15th-Anniversary-273344703> Acessado em 31 de julho de 2018.

É bastante comum nos depararmos com toda uma computadorização das tendências da cultura de um modo geral. Todos os meios criam sua própria interface, e em mídias digitais somos expostos a uma experiência estética dessa interface. Vale trazer a ideia de Peter Weibel (2000) ao dizer que nós não possuímos acesso ao mundo, mas sim a uma interface do mundo. Em seu livro, Johnson (2001) afirma que

somos fixados na imagem não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade, a tal ponto que a antiga oposição imagem-realidade realmente não opera mais. (…) as tecnologias, ao surgir, possuem invariavelmente a aura da irrealidade, depois marcham a passo regular rumo ao mundo natural. (JOHNSON, 2001, p.28, tradução nossa)

Para Manovich (2001), há uma possível lógica executável por meio do arquivamento assim como uma linguagem das interfaces gráficas, com uma compreensão fácil pelo operador em função de sua bagagem composta por diversos formatos culturais que o são familiar e, portanto, anteriores ao atual. Sendo assim, observa-se que, ao longo da história das tecnologias, as interfaces são resultados decorrentes do acúmulo de inúmeros arquétipos de tela: “a estática (pintura), a dinâmica (cinema e vídeo), em tempo real (inaugurada pela invenção do radar) e interativa (altamente presente nos softwares e por consequência na web) e também das características das evoluções do campo dos estudos de interação humano-computador (HCI), do cinema e do impresso” (MANOVICH, 2001).

Eu introduzi o termo “interfaces culturais” para descrever as interfaces usadas pela hipermídia autônoma (CD-ROM e DVD títulos), sites, jogos de computador e outros objetos culturais distribuídos através de um computador. Acho que precisamos de um termo, pois como o papel do computador está se deslocando de ser uma ferramenta para uma máquina de mídia universal, estamos cada vez mais “interfaceando” com dados predominantemente culturais: textos, fotografias, filmes, músicas, documentos multimídia, ambientes virtuais. Portanto, a interface humano-computador está sendo complementada pela interface humano-computador-cultura, que eu abrevio como “interface cultural”. (MANOVICH, 2001, p.79, tradução nossa)

Há um senso de conexão para uma cultura, onde existem “dados para dar sentido a outros dados” (JOHNSON, 2001), sendo esta uma faísca para pensarmos o software introduzido na história de nossa cultura. Ou seja, ainda para Johnson (2001), as interfaces “são softwares que dão forma à interação entre usuário e computador”, sendo este um exercício a fim de transformar os zeros e uns em símbolos gráficos com a intenção de facilitar o entendimento do usuário. Quando criamos um trabalho em meio às novas mídias pode-se dizer que estamos construindo uma interface para um banco de dados, porém toda a experiência que cada usuário tem é diferente e isso pode traduzir distintos bancos de dados na interface conforme essa experiência.

Para Manovich (2001),

ícones e janelas múltiplos e simultaneamente ativos de GUI se tornam os quadros e hyperlinks múltiplos e simultaneamente ativos dessa obra de arte da internet. Cada ação ou muda o conteúdo de um único quadro ou cria novo(s) quadro(s). Em ambos os casos, o “estado” da tela é afetado como um todo. O resultado é um novo cinema onde a dimensão sincrônica não é mais dependente da dimensão diacrônica, o espaço não é mais dependente do tempo, a simultaneidade não é mais dependente da sequência, a montagem dentro de um plano não é mais dependente da montagem no tempo. (MANOVICH, 2001, p.273, tradução nossa)

O jogo Diablo III (Figura 2), da Blizzard Inc., é um jogo de RPG de ação (Role-Playing Game) onde sua própria história segue a de seu antecessor Diablo II: Lord of Destruction após 20 anos dos acontecimentos que marcaram o seu fim. Temos um jogo que continua o mesmo (visão isométrica), porém faz uso de recursos das novas tecnologias reproduzindo um mundo completamente 3D e interativo, sendo possível destruir o próprio cenário do jogo. Para Bolter e Grusin (2000, tradução nossa), “um meio é aquilo que remedia. Aquilo que se apropria das técnicas e significados sociais de outra mídia e cuja pretensão é dar-lhes vida ou repaginá-las em nome do real”.

Figura 2: Diablo II e Diablo III respectivamente. Imagem produzida pela autora.

Podemos afirmar que os jogos de computador possuem forte influência dos jogos de tabuleiro a partir de sua estrutura básica: a sua interface. Foi preciso criar toda uma alfabetização visual para os usuários de videogame. Esse “empréstimo” dos elementos de outras mídias já existentes proporcionam toda uma familiaridade e algum tipo de referencial para essa nova mídia. Para Mark J.P. Wolf,

games com gráficos representacionais muitas vezes se apoiam em convenções de outras mídias audiovisuais, e progressivamente, em convenções estabelecidas nos primeiros videogames, dando-lhes uma familiaridade intrínseca que permite aos jogadores começar jogando sem ter de aprender a interface. (WOLF, 2003)

Considerando a perspectiva da interface cultural, o que seria então o ato de jogar*? Huizinga (2000) sugere como definição de jogo uma ação lúdica em conjunto a um ato voluntário caracterizado como um escape da vida real, com limitação de tempo e espaço, contemplando uma ordem mesmo que temporária. Ou ainda, o jogo como uma qualidade de ação. Galloway (2006) traz a seguinte linha de pensamento: se as fotografias são imagens e se os filmes são imagens em movimento, então os videogames são ações. Ou seja, para o autor jogos são ações tanto do operador (jogador) quanto da própria máquina, onde tais ações podem estar na diegese ou fora dela. Se excluirmos a participação ativa de jogadores e máquinas, os videogames passariam a ser meros códigos de um computador estático. Existem, sim, ações que são realizadas por quem joga, mas do mesmo modo existem várias outras realizadas pela máquina (podendo ser uma resposta a alguma ação do jogador como algo já existente na natureza do jogo). Para entender os videogames, é necessário entender como essa ação existe no jogo, atentando para suas inúmeras variações e intensidades. O jogo e/ou videogame é um meio baseado em ação por conta de seus modos de ser e agir, que vão se atualizando e se desenvolvendo simultaneamente, a partir de técnicas, práticas, atitudes, tanto comunicacionais quanto tecnológicas.

Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos. Em toda a parte, encontramos, presente o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida “comum”. (HUIZINGA, 2000, p. 7)

Um videogame, portanto, é um objeto cultural, ligado à história e à materialidade, composto por um dispositivo computacional eletrônico e um jogo simulado em software (Figura 3). Portanto, é um meio cultural envolvendo um grande número de máquinas orgânicas e inorgânicas. As interfaces dos jogos e sua mecânica, são lugares onde os principais modelos de funcionamento físico, sensorial e cognitivo são evidentes e encenados — “espaços onde subjetividades maquínicas normativas são construídas” (PARISI, 2017). Em seu livro “The Game Player’s Duty: The User as an Assemblage of the Ports”, Claus Pias (2011)observa a relação entre jogadores e máquinas de jogar. Pias (2011)propõe, em vez disso, que o usuário se torne componente das máquinas com as quais faz uso por meio de um processo de subjetivação maquínica. Quando concordamos em jogar um jogo de livre escolha, o jogador toma para si a responsabilidade de responder às solicitações que a máquina faz; sendo que qualquer identificação de abandono feito pela máquina deste dever do operador, o mesmo é “punido com uma morte simbólica”. Como explica Pias (2011):

Um programa de jogo é […] não apenas um conjunto de instruções, uma espécie de código de leis para o mundo do jogo em particular, que tenho o dever de seguir quando estou na companhia de computadores, mas ao mesmo tempo também um agente da polícia que monitora precisamente minhas ações. (PIAS, 2011, tradução nossa)

Figura 3: Print da tela de Diablo III. Imagem produzida pela autora.

Não há, portanto, interação sem comportamento visual ou tátil: o computador precisa ser “humanizado”. Segundo Pias (2011), “o usuário também precisa ser habituado à máquina, com uma união (ou sutura) dos corpos humanos e da lógica da máquina […] necessária para que o próprio usuário se torne ’em forma de máquina’”. Podemos observar que os jogos acabam por ser (em último caso) “um teste da compatibilidade” entre humano-máquina: “os humanos passam neste teste quando “adquirem a capacidade de funcionar como componentes da máquina” (PIAS, 2011), mesmo que as possibilidades do jogo e toda sua estrutura são simplesmente incompatíveis com seus corpos.

Em meio a cultura de novas mídias e as interfaces culturais, há uma cultura de código aberto, o que significa termos interfaces abertas: “liberdade de se conectar a imagens técnicas” (GALLOWAY, 2012, tradução nossa). Tal código aberto devemos encarar como um artifício comunicativo, como qualquer outro. A partir desse movimento, pode-se fazer uma reflexão quanto a mídia em geral (incluindo os jogos digitais) de que mediar é, portanto, criar interfaces e que “mediação em geral, é apenas uma petição em particular, e portanto, os ‘novos’ meios são, na verdade, todos os artefatos e vestígios do passado que aparecem em um presente em constante expansão” (GALLOWAY, 2012, tradução nossa).

Observação

*Artigo completo em: https://www.sbgames.org/sbgames2018/files/papers/CulturaFull/187103.pdf

*Sabemos que o ato de jogar (gameplay) vai além e não se reduz somente a tela. Porém o interesse que aqui se faz presente é partir dos vestígios, pistas que vêm do âmbito da imagem técnica/interface gráfica do game.

Referências

BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambrigde: MIT Press, 2000.

GALLOWAY, A. R. Gaming: essays on algorithmic culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.

GALLOWAY, A. R. The interface effect. Polity Press, 2012.

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5o. ed. [S.l.]: Perspectiva, 2003. p. 256.

JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Tradução, Maria Luísa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Massachusetts: MIT Press, 2001.

PARISI, David. Game interfaces as disabling infrastructures. Disponível em: <http://analoggamestudies.org/tag/lev-manovich/> Acesso em 23 de julho de 2018.

PIAS, Claus. The game player’s duty: the user as a Gestalt of ports, in Media archaeology: approaches, applications and implications, eds Erkki Huhtamo and Jussi Parikka. Berkeley: University of California Press, 2011, p. 164–183.

WEIBEL, Peter. El mundo como interfaz. Revista Elementos. Nº 40, 2000. Disponível em: < http://www.redalyc.org/pdf/294/29404005.pdf> Acesso em 25 de julho de 2018.

WOLF, Mark J.P. Abstraction in Video Games in Wolf, mark J.P.; PERRON, Bernard (org.). The video game theory reader. London: Routledge, 2003.

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Camila de Ávila || PhD candidate in Communication Sciences • (Archaeo)Game researcher • Art Director • Casual Gamer • Cat Lover