O Déjà vu na Tecnocultura Audiovisual

O Curioso Mundo de Camis
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7 min readMar 19, 2020

Quando partimos da reflexão de Debra Benita Shaw que afirma que “ao falarmos de tecnologia, estamos nos referindo ao conjunto de ferramentas ou ‘técnicas’ que atendem aos requisitos de qualquer cultura” (2008, p. 14, tradução nossa) estamos nos posicionando sobre investigar técnicas e estéticas dos produtos comunicacionais pensados tecnoculturalmente, partindo do pressuposto de que pensamos sobre técnica e cultura em estado de relação, contágio, coalescência. Associada a essa perspectiva, agregamos uma segunda: todos os produtos comunicacionais podem ser pensados como corpos dotados de memória, essa é uma reflexão que parte de uma visão presente na obra do filósofo vitalista Henri Bergson (2005) que foi posteriormente articulada às reflexões sobre as audiovisualidades a partir do trabalho de Kilpp (2010) e outros. Estas duas perspectivas (visão tecnocultural e objetos de mídia como portadores de memória) acaba também comparecendo nas reflexões que convocam a leitura de Lev Manovich sobre as mídias digitais:

Todas as técnicas, formas e imagens modernas e de vanguarda são armazenadas para acesso direto aos bancos de memória computadorizados de nossa cultura. Mas a mesma memória também armazena toda a arte pré-moderna, assim como os gêneros, códigos e mundos de imagem das culturas populares e da moderna cultura de massa. (HUYSSEN apud MANOVICH, 2013, p. 219; tradução nossa)

Se entendemos que todo objeto de mídia possui memória, dentro de uma ambiência tecnocultural, é possível aceitarmos que estes objetos são permeados por uma dialética de lembrança e esquecimento (uma das formas de perceber isso está na própria obsolescência programada de games e outras materialidades). Contudo, para enriquecer a reflexão, Peter Krapp (2004) observa um fenômeno em meio as mídias que não é memória, tampouco esquecimento: estamos falando do déjà vu. Historicamente, este termo poderia ser aplicado às mídias por volta do século XIX, período no qual a memória surge como um elemento criador de identidades e que, por outro lado, vem acompanhado de uma preocupação com o excesso de memória. Este é um período onde surgem novos equipamentos os quais são desenvolvidos para o aprimoramento da memória: a fotografia e o filme. É neste momento que teremos uma mudança no entendimento do termo déjà vu, o qual inicialmente era tido como uma ‘contínua repetição de algo estranho’ e, posteriormente, entendido como ‘aquilo já visto’.

Conforme Krapp (2004), não é por acaso que essa descontinuidade na história de um “intraduzível fenômeno” surge logo depois que as guerras mundiais inauguraram novas tecnologias de mídia as quais funcionavam como distração em massa. Com isso, podemos pensar no efeito cultural do déjà vu. Inicialmente, as primeiras especulações sobre o déjà vu eram contemporâneas à invenção das tecnologias de mídia (fotografia, telegrafia e fonografia). Porém, essa experiência de uma repetição misteriosa em sua essência se mantém irrepetível: não é possível gerá-la à vontade.

(…) o déjà vu não é nem um fracasso da memória nem uma forma de esquecimento. Enquanto as humanidades tendem a celebrar a memória cultural e alertam contra o esquecimento, muitas vezes relegando-a a uma contraparte dialética necessária, déjà vu figura como uma reserva: é uma espécie de memória sem memória, uma espécie de esquecimento sem esquecimento. (KRAPP, 2004, p. x, tradução nossa)

Por mais que o esquecimento esteja intimamente associado ao desaparecimento, existe ainda o fato de que o esquecimento retorna inúmeras e repetidas vezes e com isso produz certos efeitos. Portanto, ainda para Krapp (2004), essa “relação entre a repetição e o esquecimento na modernidade é reformulada em todas as combinações possíveis: como equivalência, causa ou efeito de cada um” (p. xi, tradução nossa). Desse modo, o autor articula uma virada a partir de Walter Benjamin e das mídias técnicas deixando de opor memória e esquecimento, mas trabalhando com a ideia de atenção e distração. Com o surgimento de novas mídias (rádio, televisão, internet), passamos a compartilhar memórias que cremos ter vivido ou tido a experiência, onde tais eventos passam a fazer parte de uma memória coletiva: algo que se repete com certa frequência podendo até se transformar em uma ficção. Poderíamos dizer que todo o filme em si, por exemplo, é uma manipulação do eixo temporal, tornando-se um meio de alterar memórias (uma relação imaginária do cinema e do tempo). O déjà vu, desse modo, passa a lembrar-se de algo que existiu, ter a sensação de já ter estado em algum lugar ou ainda ter realizado alguma atividade sem a ter feito, de fato.

(…) Aqui, o esquecido nunca terá ocorrido, enquanto o esquecimento continua operativo. O esquecimento enquanto esquecimento não pode escapar da auto aplicação em que se perde e, portanto, sua fenomenalidade é um mero traço. Uma memória do esquecimento permanece, irreversivelmente, uma recuperação paradoxal: aqui o lapso originário só se mostra como um lapso nas origens. O que resta é uma memória de tela. (KRAPP, 2004, p. xiii, tradução e grifo nosso)

Aproximando esse pensamento do nosso lugar de fala, percebemos o déjà vu como uma qualidade das mídias presente em nossa tecnocultura, levando em consideração a “perspectiva de pensar o surgimento e desenvolvimento dos meios de comunicação e representação como resultantes desses processos de articulação entre tecnologia e cultura” (FISCHER, 2013, p. 197). Partindo da ideia de que o déjà vu torna-se um elemento presente na nossa tecnocultura, a repetição acaba sendo uma característica de diversas mídias, e no nosso caso, uma característica das máquinas de jogar as quais nos treinam para usá-las de várias formas. É possível argumentar que o avanço da tecnologia das mídias está posto a serviço da tomada de algo que não é possível “prender” sem a sua ajuda. Nesse caso, se tais tecnologias permitissem o acesso e o controle à repetição sem precedentes, “elas não apenas instigariam o debate em torno do déjà vu, elas logo tentariam aproveitar o efeito déjà vu e acabariam transformando a experiência do déjà vu” (KRAPP, 2004, p. xx-xxi, tradução nossa). Podemos aqui especular que as tecnologias provocam uma aceleração de um efeito cultural do déjà vu que nos levam a suposições quanto a nossa relação com o que nos seria familiar.

Se pegarmos os frames de games, por exemplo, e aproximarmos dessa relação entre memória e tela, existe um potencial: há uma construção com as camadas do devir onde estas são atravessadas por uma memória que perpassa cada quadro do jogo. Na medida que nos interessam os jogos que voltam por dentro de outros jogos, percebemos que estes podem aparecer transformados, ou com uma roupagem mais coerente com o determinado jogo que os abriga. Desse modo, percebemos que a memória não é simplesmente o armazenamento de dados em meio a uma cultura onde o computador é tido como máquina de mídia universal, mas sim temos uma memória (lembrança, déjà vu, não no sentido de arquivo) com a sua função sendo alterada. Existe um processo de auto referencialidade, de Bernhard Rapp (2007), que está presente no comportamento de outras mídias (cinema, vídeo e televisão) os quais na maioria das vezes possuem a característica de se auto citarem nos seus próprios produtos. Portanto, trazer a discussão sobre o déjà vu nos games permite refletir sobre a memória e a lembrança (por vezes nostalgia), e por sua vez, dialogar com o fato de que essa relação memória-tela em meio aos jogos atualizam um determinado devir tecnocultural.

Sabemos que qualquer produto cultural cita alguma coisa em si, e no presente trabalho o “citar” se diferencia quanto à maneira que nos propomos pensar com o déjà vu que vai mais na direção da memória, lembrança, recordação. Um exemplo visto recentemente é a possibilidade de você jogar o clássico jogo Where in the World is Carmen Sandiego?* na plataforma do Google Earth (Figura 1): temos o resgate de um jogo para dentro de um site de geolocalização, um jogo que é de um outro tempo (cronológico) atualizado na plataforma do Google Earth. Em um primeiro momento é coerente a escolha desse jogo para rodar dentro de um software de geolocalização, pois para capturar Carmen Sandiego você precisa encontrar pistas e ir se deslocando por diferentes locais no globo que conduzem a caçada pela vilã que roubou as joias reais de Londres.

Figura 1 — Carmen Sandiego no Google Earth. Captura de tela do site do Google Earth com a notificação do jogo. Fonte: Produzido pela autora.

Hoje em dia, existem aplicativos de mapas, utilizamos serviços de geolocalização (Waze ou o próprio Google Maps) para nos movermos dentro da cidade ou para simplesmente nos localizarmos. Seria muito simplista pensarmos no contexto em que nos encontramos, que isto seria apenas uma gamificação no Google Earth, ou uma gamificação de um aplicativo de geolocalização (não que não possa ser). Aproximando da discussão quanto ao déjà vu, temos aqui lembranças de uma mídia que traz outra mídia dentro de si. Podem existir inúmeros outros déjà vus presentes nos jogos digitais, porém nos interessa pensar o jogo dentro do jogo, a potência de se auto referenciar a si mesmo como característica de uma tecnocultura gamer.

Nota:

*Este post é um capítulo extraído do meu artigo “O Efeito Cultural do Déjà vu em Jogos Dentro de Jogos” apresentado no XIX Intercom 2019, GP Games, sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Daudt Fischer. Artigo completo em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-0216-1.pdf

*Where in the World is Carmen Sandiego? é um jogo de computador da Brøderbund Software (1980). O jogador é um detetive que coleta pistas ao redor do mundo para resolver um caso, se detendo em aspectos geográficos e características de diversos países. Além do jogo, foi lançada uma série de desenho animado (1990), Where on Earth is Carmen Sandiego?. Em março de 2019, a Alphabet Inc lançou Carmen Sandiego The Crown Jewels Caper, similar aos primeiros da franquia, disponível como extensão dentro do Google Maps e do Google Earth, onde o jogador precisa seguir as pistas da protagonista enquanto é levado de cidade em cidade, utilizando como cenário o próprio mapa dos serviços Google.

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FISCHER, Gustavo Daudt. Cinema em devir nos games: por um olhar arque-genealógico nas interfaces culturais. In: GERBASE, Carlos; GUTFRIEND, Cristiane Freitas. (Orgs.). Cinema em choque: diálogos e rupturas. 1ed. Porto Alegre: Sulina, 2013, v. 1, p. 195–214.

KILPP, Suzana. A traição das imagens: espelhos, cameras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios, 2010.

KRAPP, Peter. Déjà vu: aberratins of cultural memory. Published by the University of Minnesota Press, 2004.

MANOVICH, Lev. El software toma el mando. Barcelona: Editorial UOC, 2013.

____________. The language of new media. Massachusetts: MIT Press, 2001.

RAPP, Bernhard. Selfreflexivity in computer games: analyses of selected examples. In: NÖTH, Winfried; BISHARA, Nina. Selfreference in the media. Berlim: Mouton de Gruyter, 2007. p. 253–268.

SHAW, Debra Benita. Technoculture: The Key Concepts. New York: Berg. 2008. Versão para Kindle.

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Camila de Ávila || PhD candidate in Communication Sciences • (Archaeo)Game researcher • Art Director • Casual Gamer • Cat Lover