O jogo dentro do jogo em Celeste
Celeste é um jogo que quase permaneceu em minha dissertação de mestrado — ficou até a etapa de qualificação. Na realidade, minha pesquisa inicialmente tinha como proposta olhar para o jogo dentro de jogo a partir de Celeste, The Witcher III: Wild Hunter, DOOM e Diablo III. Por necessitar realizar escolhas especialmente pelo tempo, acabei optando em manter a franquia de Diablo, a qual já me demandou um trabalho e tanto. Ainda assim, são jogos que tem influência e ajudaram bastante nas minhas reflexões, como vou mostrar neste post sobre Celeste.
Todo e qualquer produto cultural, potencialmente, pode citar ou fazer referência a alguma coisa em si, até mesmo, por sua vez, auto referenciar-se. Celeste é um jogo cuja uma das características, que me chamou a atenção no começo da pesquisa de mestrado, é o fato de que, por mais que seja um jogo “novo”, ele se mostra com uma necessidade de lembrar de si mesmo. O jogo está acontecendo, mas ele ainda quer ficar/ser lembrança. É o momento que o jogador encontra o computador com acesso a versão 8 bits do próprio jogo, o qual é o seu protótipo original. Uma vez encontrado este artefato, é possível acessar o jogo diretamente no menu do jogo maior.
Lançado em 2018, Celeste é um jogo de plataforma de dois desenvolvedores canadenses chamados Maddy Thorson e Noel Berry, com a arte de um estúdio brasileiro, o MiniBoss. Originalmente, o jogo foi criado enquanto um protótipo ao longo de quatro dias durante uma Game Jam e depois foi expandido para o seu lançamento completo. Seu protótipo original foi criado para a plataforma Pico-8, um motor gráfico que possibilita que os jogos rodem em um navegador/browser — uma espécie de “console virtual” que oferece aos desenvolvedores uma estrutura que permite criar jogos como se fosse um hardware real com recursos técnicos definidos.
Em Celeste, o jogador controla Madeline enquanto ela sobe uma montanha, evitando inúmeros obstáculos. A personagem do jogo, além de saltar e escalar paredes durante um tempo limitado, também possui a capacidade de se deslocar através de um traço no meio do ar (dash) nas oito direções cardeais e intercadinais. Conforme o jogo avança, o jogador irá encontrar mecânicas adicionais e, assim, como consequência, a dificuldade do jogo aumenta.
Este é um jogo rico de elementos e possibilidades a serem analisados:
1) O protótipo original do Celeste Classic Pico-8 pode ser encontrado como um minigame escondido, ou seja, é possível jogar o protótipo do jogo em sua versão 8 bits dentro do jogo maior;
2) Existem fitas cassete que desbloqueiam variações mais difíceis em certos níveis, chamados de “B-Side” (o conhecido “lado b”);
3) Se o jogador consegue concluir todos os “lados b”, são desbloqueadas as versões “C-Side” (como se fosse o “lado b” do “lado b”), que por consequência são mais difíceis que as “lado b”;
4) Ao encontrar corações de cristal, estes permitem o acesso ao conteúdo pós-jogo;
5) Existe um menu chamado “variantes” que permite o jogador alterar a física do jogo, como por exemplo acelerar o jogo, 360º e baixa fricção em todas as superfícies planas, tornando o jogo mais desafiador;
6) Há o uso de temporalidades (sonho e realidade se misturam);
7) Nostalgia de jogos antigos.
Para o que eu estava me propondo pesquisar, meu foco era no jogo dentro do jogo, ou seja, a versão 8 bits jogável de Celeste que está escondida no jogo. Isso auxilia a pensar nas questões de autorreferencialidade.
Bom, algo que minha pesquisa de mestrado aponta e que volta e meia falo por aqui é que todo jogo são muitos jogos. A cada nova atualização no jogo (iteração) é acionada uma nova camada e olhando por essa perspectiva, nenhum jogo é somente uma única mecânica — quase sempre há um complexo de mecânicas (desde a game engine, os próprios recursos gráficos, elementos básicos de interface etc.), mesmo que existam os mais variados gêneros de jogos. E isso convoca reflexões não apenas relacionadas às mecânicas, mas discussões sobre esses jogos que resultam de uma memória dos jogos. Essa memória retorna a si mesma como outro game (jogo dentro do jogo) ou um outro momento dentro do jogo principal.
Na minha dissertação, elenco 4 formas de olhar para o jogo dentro do jogo:
a) O jogo dentro do jogo com uma qualidade de incrustabilidade, podendo gerar nostalgia, tributo, dejà vu, autorreferencialidade etc.;
b) O jogo dentro do jogo com variações na mecânica ao longo do jogo (minijogos, missões, eventos etc.);
c) O jogo dentro do jogo em uma concepção tecnoestética: a imagem e seu processamento tecnológico, a modularidade do software (que combina em si vários módulos de jogos);
d) O jogo dentro do qual o jogo está inserido: a franquia da qual o jogo faz parte, seus desdobramentos e extensões.
Ou seja: não apenas exploramos o território do jogo para encontrar artefatos ou características estéticas/mecânicas que indiquem uma incrustação/incrustabilidade como qualidade de ação própria do jogo. Possuímos um ambiente construído, onde as características de lembrança relacionam-se entre si, dentro do seu próprio universo. Além disso, o “jogo dentro do jogo” não precisa necessariamente ser um jogo jogável, literal, diegético.
Recentemente me deparei com a novidade de o “Celeste Classic” ganhar continuidade: Celeste 2: Lani’s Terk ou Celeste Classic 2, compartilhado no Twitter por seus criadores Noel Berry e Maddy Thorson. É possível jogar a sequência do protótipo original através da página do jogo no Itch.io. Enquanto o protótipo original foi criado ao longo de quatro dias em uma Game Jam, Celeste Classic 2 foi criado em três dias e seu lançamento é comemorativo aos seus três anos de lançamento. Essa sequência me chamou a atenção: aparentemente, é um jogo dentro do jogo que deu certo, onde inicialmente surge como uma espécie de autorreferência e/ou tributo a si mesmo, e agora se “emancipa” do jogo principal, podendo ser jogado à parte.
Sua sequência mantém seu traço desafiador, ambientado no universo de Celeste (o jogo maior), apresentando uma nova personagem que faz uso de um gancho de escaladas (grappling hook) ao invés do air-dash de Madeline: a Lani. Temos uma expansão do espaço do jogo, mas ainda continua sendo Celeste, com suas características próprias (em função de sua “independência”) e com acionamentos de “modos de jogar” distintos.
Há muitas tecnologias que querem que estejamos sempre lembrando, em função da possibilidade que temos hoje de compartilhar memórias que já vivemos alguma vez. Com este raciocínio, poderíamos considerar os games como um memento: possuem a habilidade de criar memórias. Essas memórias retornam a si mesmas como outro game (o jogo dentro do jogo) ou um outro momento dentro do game principal.
Celeste Classic enquanto um momento que está ocorrendo em Celeste, por exemplo, passa a contribuir para o surgimento de um significado mais amplo daquele ambiente/universo. Poderíamos encarar o universo de Celeste como uma espécie de “rede de incrustação”: o jogo se origina de seu protótipo, que está contido no jogo maior, e a sequência que é lançada é do protótipo, e não do jogo maior, mas ainda assim faz parte do universo do jogo.