O PECULIAR ATELIÊ DE ENFEITAR SAUDADES

Mateus Lima
o doce pierrot
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5 min readJan 9, 2019

A avenida dos esquecimentos talvez fosse a via mais movimentada do centro da grande cidade dos corações partidos, tanto pelo excessivo número diário de transeuntes, quanto por abrigar a maior quantidade das lojas de reparo da região. A apresentação da famosa avenida era, por si só, um grandioso espetáculo. A sua extensão prolongava-se em metros, quilômetros e enormes edifícios cujos estilos, misturavam formas, cores e tamanhos diferenciados.

Mesmo em dias comuns, amontoavam-se entre os passantes, uma centena de artistas de rua. Pintores, equilibristas e, sempre em maior número, músicos esforçavam-se, em vão, na tarefa de chamar atenção dos pedestres cabisbaixos. Nada na avenida parecia, no entanto, se movimentar, salvo uma linha finíssima de pura melancolia que, de tão presente, tornava-se física, saindo do asfalto e pairando no ar sobre as tantas cabeças difusas.

Os nativos daquela cidade, os partidos, eram, realmente, criaturas muito peculiares. Nasciam com os peitos abertos e extremamente sensíveis a qualquer tipo de sentimento, de modo que precisavam constantemente de remendos. Um partido adulto saudável reparava-se, em média, uma vez ao mês, a depender, bem verdade, do tamanho da abertura de seu peito, da espessura do seu coração, da variação e frequência de seus batimentos, além do peso que as suas costas suportavam carregar.

Por esse motivo, viviam sempre lotadas as lojas de reparo. Na rua dos esquecimentos, os empreendimentos cresciam em uma aterradora velocidade. Os prédios das lojas colecionavam andares e mais andares de atendimento, os procedimentos modernizavam-se ao passo que os partidos se partiam ainda mais. Era um tempo, assustadoramente, sombrio. O dinheiro aprendera a comer a sensibilidade, encher de carência e falta de afeto os indivíduos e os tornar seres emocionalmente doentios, dependentes.

No entanto, havia naquela rua uma loja peculiarmente diferente. Esmagado por entre os enormes edifícios, um pequeno estabelecimento resistia aos infortúnios do tempo e frieza do concreto ao seu redor. O estilo da construção remontava séculos passados e destoava, de forma poética, dos demais prédios. Era uma casinha laranja de cor desbotada, cuja pintura descascava a parede em inúmeros pontos. Nas duas janelas laterais, penduravam-se galhos de uma trepadeira, incrivelmente verde, que descia da altura do telhado e rameava até o nível da porta quase escondendo a placa talhada em madeira onde podia-se ler:

ATELIÊ DE ENFEITAR SAUDADES

O interior do ateliê era muito curioso. A começar pelo perfume misteriosamente diferente para cada pessoa. Diziam que o cheiro da loja trazia lembranças da infância, por isso os muitos relatos de fragrâncias de bolo quente, algodão doce, terra molhada, café de fogão de lenha, maré mansa e livros velhos. Os clientes aspiravam o próprio cheiro de suas infâncias, por isso sentiam-se confortavelmente melancólicos.

Todo o ateliê aparentava ao mesmo tempo rusticidade e delicadeza. Um grande sofá de madeira disposto ao lado esquerdo da loja parecia muito aconchegante, repleto de uma quantidade considerável de almofadas coloridas. No teto, as telhas pintadas formavam um quadro de típica cena bucólica cuja imagem retratava um jovem casal a brincar em um balanço pendurado em uma grande árvore das quais saíam cordas que pulavam da pintura, pendiam do teto e sustentavam no meio da loja um balanço real igual ao da pintura na cobertura.

Nas prateleiras, ao redor, dezenas de pequenos potes guardavam materiais de trabalho. Miçangas, fitas, estrelas, adesivos, botões, elásticos, tintas e pó de brilho de todas as cores. Em outro canto, um amontoado de outros potes mantinham saudades que foram esquecidas. Os frascos devidamente etiquetados mostravam os nomes dos clientes e as datas de permanência na loja, a fina camada de poeira por sobre os potes acusava o tempo.

A loja era das mais velhas de toda a cidade. À época de sua inauguração, quando as pessoas costumavam tratar saudades, era preciso marcar horários e aguardar pacientemente a vez. Afinal, no fundo, todo partido possuía alguma boa recordação que, uma vez enfeitada, poderia, junto a outros bibelôs, preencher as suas estantes.

Apesar de toda a movimentação, o ateliê nunca expandiu, recusando-se, de modo bastante resistente, a modernizar os serviços ou substituir o trabalho manual pela mão de obra das máquinas que dominava o mercado.

As proprietárias do estabelecimento, as gêmeas artesãs, conheciam os mecanismos das saudades e sabiam da particularidade que cada tipo daquele sentimento carregava. Elas acreditavam que as saudades deveriam ser tratadas com grande delicadeza, pois qualquer mero descuido ou ponto fora do lugar poderia findar o curso das boas lembranças e transformar as saudades em cicatrizes de recordações ruins.

Naqueles dias, porém, as irmãs notaram pesarosamente que o movimento do ateliê diminuíra de maneira alarmante. Durante semanas, nenhum cliente procurou o serviço de modo que o ateliê permanecia vazio, apesar da movimentação da rua devido a chegada da época natalina que, em outros tempos, costumava trazer multidões à loja. Os partidos apreciavam presentear seus entes queridos com recordações brilhantes e até mesmo saudades que serviam de enfeites para árvores ou mesmo em forma de guirlandas natalinas para as portas de suas casas.

Mesmo transcorrendo centenas de pensamento de desistência, as irmãs artesãs decidiram, ainda que relutantes, buscar consultoria profissional a fim de compreender as causas do insucesso no negócio. Estavam certas de que era necessário, talvez, atualizar os serviços ou, ainda, modificar os materiais com os quais costumavam trabalhar.

Jr. Martins, o mais antigo e popular consultor da cidade, ao visitar o ateliê, trazendo debaixo do braço esquerdo a sua grande fama de conseguir transmutar negócios fracassados em sucessos de vendas, depois de uma minuciosa análise do ambiente, cordialmente, alertou as irmãs:

–As pessoas, minhas queridas, esqueceram de tratar as suas saudades e, por isso, a cidade respira um imediatismo agudo e uma crise de presenteísmo crescente.

As artesãs ouviam pacientemente, buscando compreender cada palavra do altivo profissional.

–Na verdade, os nossos partidos não revisitam os seus passados, pois estes tornaram-se feridas abertas cuja exposição causa bastante dor. É preciso curar os ferimentos para depois enfeitá-los.

As palavras do consultor fizeram profundo sentido e, por isso, depois de sua saída da loja, as irmãs chegaram à óbvia conclusão de que prestariam mais um serviço no estabelecimento. Estavam certas de que possuíam, além da habilidade de enfeitar saudades, a destreza para curar ferimentos, com gazes, esparadrapos e ouvidos atentos.

O ateliê de enfeitar saudades não demorou, então, para anunciar tão bela novidade. Uma grande placa estendida na frente da loja exibia o seu novo nome

ATELIÊ DE CURAR PASSADOS E ENFEITAR SAUDADES

Tamanha foi a curiosidade dos passantes que, em poucos minutos, à frente da loja formavam uma grande fila. No intervalo de horas, dúzias de passados foram tratados, outras dezenas de lembranças ruins tampadas com curativos e algumas cicatrizes tratadas com pomadas especiais.

Não só os partidos, mas as irmãs artesãs compreenderam, no fim daquele dia, que é importante cuidar de passados, curando machucados a fim de que, depois de secos os ferimentos antigos, seja possível enfeitar as saudades e ornar as boas lembranças que restam das feridas.

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