PEQUENA HISTÓRIA DE UMA PAIXÃO CADENTE ou EPITÁFIO DE UMA

ESTRELA AMANTE

Mateus Lima
o doce pierrot
Published in
4 min readJan 17, 2018

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Love is not a victory march

Na sutileza dos dias de verão, há algum tempo, o céu segredou-me uma história que hoje, no alvorecer dos meus anos, eu posso compartilhar com outros ouvidos atentos, tanto quanto foram os meus naquela ocasião.
No silêncio de uma noite quente de Janeiro, o céu se abriu para mim, revelando o que eu jamais esperava saber.

Lá de cima, no infinito silencioso de sua existência, ele costuma nos observar categórico. Assim como a lua e as estrelas conhecedoras de nossas ações, mesmo borrado pela névoa de nuvens – seja noite ou dia – o céu, que sempre nos assiste, contou-me:

Pode a paixão ser o maior remédio para a alma, pode, por outro lado, ser o seu próprio veneno. Na eternidade de meus anos, fui testemunha de muitos casos de amor. Alguns provocaram em mim tão profunda alegria que me fizeram junto ao sol produzir dias lindos e brilhantes. Outras, no entanto, fizeram-me chover tristezas em longos dias nublados. Contar-te-ei hoje, meu jovem, a história de uma estrela que, por força de seu sentimento, mudou o curso de seu destino.

Ela era uma estrela não tão diferente das outras que habitam em mim. Seu brilho juvenil, por outro lado, sempre fora demasiado radiante, de modo que as outras de mesma idade invejavam sua notável presença. Crescia aquela pequena estrela em beleza e luminescência, confirmando o que aos meus olhos sempre foi claro: seria, um dia, a dama maior de minhas meninas, prima-dona de sua constelação.

Deu-se o infortúnio, no entanto, quando os seus olhos – tão descuidados – lançaram sobre a terra um curioso olhar. Nos limites do chão de terra batida, a milhas de distância do etéreo, encontrava-se um rapaz, perdido na fragilidade inocente de sua mortal condição humana. Mas tão belo! Reparou a bela estrela...

De fato, cintilava no jovem, de dentro para fora, alguma espécie de luz incomum, própria dos poucos humanos agraciados com bons sentimentos nos dias que correm. A estrela o olhou e, subitamente, desejou de todo coração estar ao seu lado.

As horas naquela noite voaram rápido de sorte que muito depressa a alvorada anunciou sua dança junto ao sol. Já encantada, a pequena estrela despediu-se do céu, ansiando a próxima noite quando por mais alguns instantes poderia contemplar tão jovial face.

Passavam os dias sorrateiros e a admiração pelo rapaz crescia como cresce a chama na presença de delicada brisa. A paixão invadiu os olhos da estrela, fez morada em seu coração e gravou o semblante do jovem em sua memória. Fosse possível, brilharia só para ele todas as noites até o ocaso de sua pobre existência mortal. De tão enamorada, já não aceitava o convite da lua para passear e permanecia sozinha, a contemplar o seu amado num intenso furor de desejo e crescente frustração.

O garoto, embora aparentasse estar sempre com a cabeça nas nuvens, nunca olhava para o céu. Não notava aquele brilho. Como pode? Questionava entristecida a pobre. Todos da pequena vila percebiam – maravilhados – aquela luminosidade peculiar, exceto os olhos do rapaz que para o chão dedicava atenção exacerbada.

Os dias tornaram-se então mais curtos e as noites mais longas e angustiantes. O coração da estrela já era, então, puro êxtase. Não conseguia mais suportar a leveza-pesada de sentir sem ser notada, amada sem ser vista. Morria, pois, um pouco do seu brilho a cada pulsante batida de seu irradiante coração.

Até que numa clara noite de inverno, quando soprava forte o vento leste e a lua estava mais cheia que de costume, num ímpeto de desespero, a estrelinha se pôs a chorar, borrando-me com tons turvos de tristeza e amargura.

Durante as horas daquela memorável noite, escorreu intensamente brilho dos
pequenos olhos. Quando as estrelas choram, tudo ao redor se esvai. Depois de todo o sentimento derramado, não restou, então, gota que pudesse servir de testemunha da tragédia.

No meu celestial silêncio, observei impotente, embora inconformado, a estrela tomar decisão tão fatal. Resolveu a pequena encerrar sua bela existência. Mais valia a morte, pensava, do que a eternidade de uma vida em desprezo porque amar sozinha é morrer um pouco mais a cada dia. Decidida a abandonar-me foi tornando-se cadente ao despencar até o chão. Um espetáculo para os olhos humanos aquele caminho luminescente de suicídio.

Triste, derramei neblina durante aquela madruga. Tão nova e desafortunada minha menina se foi sem saber a verdade: o dono de sua admiração, o menino da cabeça anuviada, não possuía o dom da visão. Cego de nascença, não olhava para o céu, pois seus olhos sequer conheceram algum dia a luz.

Posso me lembrar, no entanto, que durante o catastrófico curso daquela lamentável morte, a combustão de sua pólvora e desejo não correspondido produziram calor demasiado que de tão intenso tocaram a face do rapaz apetecido. Intrigado, testemunhei, naquele momento, um milagre incomum: a morte de uma estrela e o nascimento de um poeta.

No exato instante do toque, chamas estelares misturadas as mais bonitas partículas cósmicas faiscaram na face do menino, fazendo tremer a sua língua e acordando em sua boca palavras que nem mesmo ele conhecia. Quando se experimenta, ainda que por um breve instante, de sentimento tão intenso, é inevitável o rompimento de sensibilidade.Aquele garoto tornou-se, assim, um grande poeta.

É da tragédia que, costumeiramente, nasce a arte. Ainda hoje ele segue ditando seus versos, compartilhando o mesmo calor que outrora sentira, mesmo sem saber, de uma jovem estrela suicida que um dia houvera lhe dedicado paixão tão brilhante, pois as estrelas quando amam brilham demais.

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