50 contos de carnaval

Nadine
O doce roxo da celeridade
3 min readMar 9, 2017

Não é uma coletânea de contos. Não é poesia nem lirismo. Vá parando por aqui se estiver esperando Mário de Andrade. No máximo vai encontrar Jaqueline Gomes de Jesus, Indianara Siqueira, Amara Moira, Hailey Kaas. E eu mesma.

Não é uma coletânea de trabalhos acadêmicos ou postagens políticas.

É carnaval. São os dias do ano em que o rapaz, aquele que não suporta ser chamado de “viado” fora da roda de amigos em tom parodioso, vai vestir um tule, um topzinho colante, uma peruca, blush rosa da Vult e sair por aí. Look de 50 contos de carnaval.

Eu saí pra ganhar meus 50 contos de carnaval. Não, não foi na pista. No resto do ano, a maior parte de nós, com nossos looks de 50 contos, vai ganhar 50 contos de rapazes que não suportam ter suas masculinidades questionadas, e nem serem vistos às claras. Mas não foi pra isso que eu saí. Nem pra pular carnaval.

Sim, eu falei que não seria uma postagem política. Juro que vou parar por aqui.

A beleza, a real beleza — e sim, há beleza em ser travesti no carnaval — é a autenticidade. Ser travesti e autêntica no carnaval é de uma beleza ímpar. Estar na contramão do carnaval. A autoafirmação de se vestir normalmente de mulher para um evento onde homens cis se autoafirmam vestindo-se de mulher com trajes quase caricatos, tais quais julgam-lhe diariamente de sê-lo — caricatura. Seu look de 50 contos de não-carnaval da José Paulino (na verdade, um tantinho mais), suado e acariciado pelas mãos das pessoas que acreditaram no seu gênero e na sua autoestima dias atrás, contra a caricatura de gênero transmisógina do carnaval que, veja bem, não é pagão por uma questão religiosa carola e tradicional.

Porque, afinal de contas, olha a ironia: a tal tradição que diz pagã tal festa e a demoniza é a tradição que, quando passa a festa, tais pessoas, estas que se deleitam e se embalsamam da luxúria e da folia, usam para alegar os seus supostos pecados diários, elas mesmas, em seus ternos e gravatas inquestionáveis.

Ah, a real beleza da autenticidade.

A real beleza que não está estampada nos outdoors da empresa de sabonetes hidratantes nas paradas de ônibus. Autenticidade esta que não é medida com selo dourado no boné, tipografia na etiqueta, mas para se ter uma ideia, algumas pessoas parecem viver seus próprios carnavais por períodos tão longos em seus próprios universos particulares que ainda assim a questionam sistematicamente. Como se tais rapazes de carnavais tão efêmeros pudessem sustentá-la. Pois não é fácil ser autêntica em um mundo de “só até o 39”, “nós não podemos alterar o seu cadastro”, “o nome da sua conta é esse mesmo?” e outras dádivas — e continuar autêntica após o carnaval.

E durante o carnaval, com todo o orgulho cis hétero de 5 dias — para descontar o restante dos dias de bloco, e por morar em um dos pontos que concentram blocos de carnaval na cidade eu não deveria — ainda manter meu orgulho LGBT, que ainda ousam chiar por uma réles tarde de domingo.

E como dizem: quem conta um conto aumenta um ponto. Mentira. Dizem. Dizem que contamos mentiras. Mas na verdade, nos dias que se sucedem, para cada travesti num ponto aumenta-se um conto. Alguns são dramas, outros terror, mas todos, lembrem-se, possuem uma rara e autêntica beleza. Não a dos amores de carnaval, talvez uma mais parecida com a de George Orwell, ou melhor, Donna Haraway. Talvez por sermos todas Janaínas Overdrive em plena essência.

Porque, em suma, o carnaval é a distopia das identidades trans.

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Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.