A inexecrável pureza do “vrau”: uma ode teórica e antiracista ao funk

Nadine
O doce roxo da celeridade
4 min readJun 1, 2018

Aqui na insônia musical, acabei sendo lembrada de lampejos de pensamento desta semana. O G1 esta semana publicou matéria sobre o fênomeno do sample de “Só quer vrau”, que definitivamente é o divisor de águas do funk paulistano. Diria mais: é a consagração do funk como um gênero inteligente, cheio de referências, capaz de produzir um fenômeno pop universal, coisa que canto a bola desde o surgimento da Carol no Rio e do Bin Laden em SP. Ambos, aliás, sempre nos cases dos gringos descolados à época.

Me incomoda muito, como mais uma vez esta semana, a idiossincrasia de músicos e ouvintes, como de praxe brancos e “eruditos”, com relação à música popular negra. Aspas vão bem ao falar destas pessoas, que insistem neste mote batido, saudosista e reducionista, de que o funk é uma repetição de poucos timbres. Curioso: tão antiga quanto a Vênus de Willendorf é a tradição tribal da música, ambas tão negras e originárias de todo o restante.

Ao desprezar a natureza tribal do funk, que alegoriza essa ancestralidade com seus tambores de bateria eletrônica, e a sua efemeridade construtiva — apesar de toda a problemática machista e meritocrata — despreza-se a origem e a síncope de toda a música brasileira, e de toda a contemporaneidade da música universal. Não é desprezo: é o racismo no cerne, a saber que, em contrapartida, romantiza-se o batuque e o negro nas composições floreadas destas bossas e sambas, embranquecidas, que cultuam Noel, Cartola, Garoto, Zé Keti e Johnny Alf. Todos de longe, à distância de acenos.

Em outro momento, e complementar a isso, conversava com uma pessoa sobre a construção e o sucesso da música popular negra. Não me recordo mesmo quando e quem, mas falávamos de como Beyoncé se tornou a rainha da indústria do “entretenimento negro” e questionávamos porque a música estadunidense tinha uma base tão forte de produção de música popular negra.

E, falando em pagode dos anos 90, este foi justamente o ponto em que toquei: na raiz de toda essa indústria fonográfica do norte, há um mercado de apropriação e entretenimento através do negro, desde a ascenção do jazz até o momento em que ele invariavelmente se torna erudito. E não apenas: mescla ao gosto do branco através do blues e das fusões e a partir do mais fresco clamor de resistência negra, que é o rap e o funk (que é o mesmo, só se repaginou, mas isso é outra pauta), gera o R&B, motor da indústria dos 80 até então.

E nós? A nossa pedra fundamental, o samba, nunca ganhou mais que a nota de admiração do branco, em um país em que, estrategicamente, vê-se perigoso que um gênero musical pertencente a uma maioria ganhe voz e corpo.

Como tal, maquearam-na de minoria também na indústria fonográfica, mas ao contrário dos estadunidenses, jamais o fizeram um entretenimento. Ao contrário, transformaram o samba em uma aliteração do jazz através da bossa nova, que vale lembrar, nasce da versatilidade e improviso de músicos negros, como Johnny Alf supracitado, Baden Powell, Jorge Ben (que Menescal admite ter sido quem levou o swing pro Beco das Garrafas), mas logo é colonizada, nada de novo, por pessoas como Vinícius de Moraes e Roberto Menescal. Enfim, uma ode ao que, aos olhos do colonizador, é o mais próximo do estado mais sublime da canção negra, mas nunca equiparável.

Um único momento da história quebrou o paradigma: a elevação do pagode a um gênero popular, pop mesmo, propulsor da indústria. Se deu em meio ao hiato da máquina da indústria fonográfica no final dos anos 80 e se aproveitou do momento do partido alto e do flerte com a ascenção de novas mídias fonográficas para lançar outro mercado fonográfico, acessível, e certeiro. Foi talvez o único momento em que a música negra se viu popular dentro de um protagonismo negro, de produtores e sambista de altíssimo nível. Até agora.

Ao ver a notícia, que foi quase agora, me recordei de outro chiclete da música eletrônica mainstream mundial — e o funk deve ser considerado, sim, como tal — que também se utiliza de um trecho sintomático de uma canção clássica italiana: “We don’t speak americano”, do Yolanda Be Cool, também hit #1 no Brasil, mas em 2010.

A faixa em questão usava o sample de “Tu vai fa l’americano”, música de Renato Carosone. Curiosamente, essa não é a única similaridade entre as duas: a insistência pegajosa em usar um sample de interlúdio para dar a base para a música, e a virada para algo explosivo e vibrante, mostram que temos uma psiquê que absorve fórmulas que vão além do controle do corpo ou de nossa erudição musical: a junção rítmica de elementos verbais, instrumentais, e percussivos, nos remete a uma transe, uma catarse coletiva, como já comprovado em diversos estudos relacionados à psicoacústica.

Independente da obtenção desse resultado através de uma orquestra ou de um conjunto de instrumentos eletrônicos, a pedra fundamental é a mesma: o sentimento de tribalidade. E não o de contemplação consciente, apesar deste conceito romântico ter sido incorporado pela música européia como uma forma, cristã, de não estar em pecado ao ouvir música. Não entregar o controle ao corpo, ao instinto.

Logo, é possível perceber o quão racializada, classista e parcial é a concepção de que o funk não é digno do posto de supra-sumo da música brasileira moderna. Não, o funk não é uma involução. É a transgressão do clássico e mais primordial conceito da música.

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Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.