Camadas de voz

Nadine
O doce roxo da celeridade
4 min readJan 5, 2018

Talvez hora dessas vocês notem que a cada ano eu me torno mais vocal sobre um determinado assunto. Por estes tempos, o tema tem sido o autismo. Se escrevo isso, é porque acabo de sair de um meltdown. Esse termo designa uma crise sensorial-emocional cuja reação varia entre a inação e o descontrole violento (daí a ser confundida com uma crise de temperamento em alguns casos — a maior parte das literaturas irá tratar este segundo grupo). Se sou vocal sobre isso, ou sobre outras coisas, como a travestilidade e a transgeneridade, ou a centralidade e o resgate da negritude, é porque em algum ponto fui calada. E não, não “me descobri” negra, ou transvestigênere, ou autista. Eu me calei. E não foi covardia. Isso também é um grande meltdown.

Uma das características que nos fazem mais sensíveis enquanto pessoas neurodiversas dentro do espectro, falando como detentora de Asperger, é a constante sinapse que cria uma ampla relação entre diversos assuntos e detalhes que normalmente fugiriam à maioria das pessoas. Juntando isso ao nosso próprio universo emocional, isso cria uma miríade de contextos e de perguntas que muitas pessoas deixariam sem respostas. Nós não. E respostas, qualquer pessoa sabe, doem.

Por estes tempos, uma frase vem circulando a rede, sobre não devermos agradecer a uma pessoa abusiva por algo que nós alcançamos. Isso me recorda sobre como voltei a ser vocal sobre Asperger e autismo e estudar o espectro (agora com maior maturidade e de uma perspectiva de gênero e raça) e como nada olhado sob largas escalas é efetivamente simples. Uma determinada pessoa me disse uma vez que eu usava meu lugar no espectro como “muleta”, como uma forma de impressionar, ou vitimizar, ou criar desculpas para não mudar determinados comportamentos. Coisa que, de fato, é algo a se policiar. E de fato, eu não tenho que agradecer a essa pessoa por saber me policiar. Entretanto, este comentário me privou não apenas de ser vocal, mas de me conhecer e me reconhecer dentro do espectro nos últimos anos.

Por outro lado, eu estaria mentindo se dissesse que eu voltaria a falar sobre isso se esta mesma pessoa não tivesse se perdoado pelas coisas que fez comigo. Tal pessoa, igualmente, sofria das mesmas opressões que praticou. O que não a isenta do que fez comigo, mas me recorda de algo muito recorrente na minha vida: eu sempre apanhei dos oprimidos. Eu sempre fui reprimida por pessoas que não tinham sequer poder estrutural para me oprimir. Talvez porque, dentro da interseccionalidade, eu fosse a ponta mais fraca. Mas talvez porque todas nós, pessoas, fôssemos. Não é possível ser vocal quando seu algoz é seu companheiro de algema. Somos vítimas de mecanismos cruéis dentro de um sistema de branquitudes e normatividades patriarcais onde, quando calada de minha ancestralidade, não era mais que o próprio racismo institucional. E mesmo assim, achei brechas.

Quando calada do meu corpo, estava entre os meus na periferia, outros corpos negros, gordos, migrantes. E achei brechas. A minha brecha foi o motivo de ter sido agredida por ter má coordenação motora, de ter tido crises de choro tidas como inexplicáveis, de ter sido trancada na sala de aula inúmeras vezes, de ter sido excluída por estar sempre fazendo “batuques estranhos”. Eu alcancei o ensino superior com uma brecha que passou percebida apenas por quem me agredia. E com este pequeno “privilégio” me tornei vocal. Aprendi com livros a ser vocal. Me distanciei pra ser vocal. Devo ter me tornado a maior traíra por ser vocal.

Nos últimos dias essas coisas todas e mais algumas foram mais fortes do que as minhas pernas ou a vontade de sair da cama. Por muito tempo eu não soube dizer o que era um meltdown, uma “crise autística”.

Eu sabia dizer que não era como pânico comum. Durante os últimos anos eu pensei algumas vezes se não era só uma farsa minha. De lá pra cá, tive alguns meltdowns públicos, alguns na companhia de pessoas. Posso ao menos rir e dizer que tenho testemunhas agora. Quando falamos de sinestesia e o quanto estas coisas são mais fortes, para além do quanto é potente você ouvir o tamborilar de dedos do seu vizinho no seu quarto e a voz dele no seu ouvido, quando se está dentro deste turbilhão, você pode sentir seus pensamentos, atribuir pesos a cada um. Você pode sentir o choro de uma pessoa quando você cochila e sonha com algo e isso parece diretamente relacionado com algo que parece próximo e indecifrável para você, como se conhecesse a sensação de alguém estar falando coisas que não condizem com o que está sentindo.

Todo mundo conhece, mas outra coisa é viver e tocar seus pensamentos. Pessoas costumam achar que é preciso uma experiência extrassensorial para isso. Eu costumo dizer que somos a coisa mais próxima de pessoas de quinta dimensão que vocês irão conhecer. É difícil fugir de si mesmo, já dizia a máxima. Meltdown é quando nos encontramos conosco com excessiva riqueza de detalhes. E muitas vezes, com os outros.

--

--

Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.