Eu sou agressiva, ou o feminismo do invisível

Nadine
O doce roxo da celeridade
8 min readMar 31, 2017

Antes de mais nada: este texto não é um mecanismo de auto-defesa. Ele é, mesmo, um arsenal bélico de destruição em massa. Apontado pra sua cara, sem firula, sem falsa premissa. Se o grosso calibre destas palavras aflige algum de seus privilégios, começamos muito bem, obrigada.

Desde a segregação racial e o apartheid, a arma em riste é uma linguagem de discurso utilizada como uma figura de afronta, nas mãos do homem negro. Imagine, pois, nas mãos da mulher, negra, travesti.

Ou talvez nem precise. Nem deveria espantar. Não só imaginam como já nos é posta todo dia. Do inconsciente (ou consciente?) coletivo à mídia chauvinista. Hipocrisia, não? Por que o espanto?

A este ponto alguém deve me perguntar se este texto tem a ver com feminismo ou se não estou sendo gratuitamente agressiva, de fato. Pois bem, o gancho é fruto da provocação. Provocações são por vezes o tempero de algumas reflexões necessárias, mas para fazê-las é preciso que haja predisposição. Na simples e sublime concepção da roda de Gil: ver quem vai ficar e quem vai fugir. O resto, vocês já sabem muito bem.

Já há algum tempo venho sendo descrita como uma pessoa agressiva em minhas argumentações. Nem sempre com essas palavras. Às vezes eu estou sendo dura, às vezes “as pessoas estão se sentindo recriminadas pelas suas posições”, às vezes eu sou só agressiva mesmo.

Como há uns meses recebi um diagnóstico de borderline (transtorno limítrofe), apesar de obviamente não atribuir a isso, procuro prestar atenção nas minhas alterações de humor, nos meus níveis de estresse, como uma pessoa ponderada e com responsabilidade sobre pessoas (inclusive com posições dentro de organizações, grupos e coletivos feministas) deveria ter, digamos, diariamente sobre qualquer aspecto da sua vida.

Antes disso eu tinha me afastado de todas estas organizações por estar completamente incapaz de ser responsável por isso, e realmente precisar cuidar de mim antes de cuidar de pessoas. É o razoável a se fazer. Pessoas quebram, pessoas precisam de cuidados não apenas de outras pessoas, mas de profissionais. Embora eu precisasse de ajuda de pessoas pra isso, porque, convenhamos, eu não tenho onde cair morta.

Um primeiro momento onde devo lembrar que: apesar de tudo, eu ainda sou uma travesti, negra, com uma baixa condição financeira, que precisa, sim, de bastante ajuda socioeconômica pra fazer qualquer terapia antes de alguém dizer “vá se tratar” e dizer de qual lugar eu faço meu feminismo.

Ainda assim, com muita ajuda de pessoas — pessoas mulheres, como diz a excelente Carmem Silva, autora do livro “Feminismo Popular e as lutas antissistêmicas” (que será lançado hoje com transmissão online) — que fazem um grande esforço conjunto para que eu exista e tenha condições de escrever um texto; alguns meses de tratamento e medicamentos e sessões de terapia frutíferas com Lucila (que tem uma paciência enorme com meu fluxo cognitivo), não apenas tive ótimas condições de retomar minha rotina dentro do fluxo trabalho/social/organizações, como também aumentei e externei minha participação dentro dos movimentos de base a partir da minha atuação, um desejo muito antigo e que me era muito importante.

A questão “sair da internet e dialogar em espaços humanizados” era uma das minha primeiras metas emocionais, inclusive, então não era meramente político. Muito evidente que eu sabia que não seria festa e bolo de maçã e guaraná para uma pessoa que tem uma pauta de luta para cada cor do arco-íris. Mas primeiro, é necessário ocupar espaços, e conhecer pessoas.

Isso fez de mim, evidentemente, uma pessoa muito mais combativa, nas questões de atuação direta por uma luta anticapacitista, por uma postura contrária à cisnormatividade, e por consequência um enfrentamento menos passivo de questões menos visíveis. Também me fez tomar mais força para não me silenciar mais dentro das minhas pautas como mulher negra, silenciada justamente em questões sutis do colorismo, das falsas premissas de fenótipos — muitas vezes puramente baseadas em presunção e num embranquecimento que se baseia muito mais em quem você assume que a pessoa “é” (preceitos de um saber que foi colonizado e apropriado mas nem sempre é fruto de um caminho elitista, meritocrático ou enbranquecido).

Este é um segundo ponto crítico, talvez um dos mais críticos: é exatamente neste ponto em que as pessoas confundem as duas pessoas políticas mais frequentes de uma pessoa em luta.

A partir deste momento, você é uma pessoa política — e politizada — que por apontar e cobrar posição, passa a ser agressiva, prepotente, e automaticamente uma autarquia.

Doravante, você não é a pessoa política que luta por estes direitos, com estas forças, porque, cansada da passividade alheia, pauta a sua travestilidade, pansexualidade, lesboafetividade, neurodiversidade, negritude.

São duas personas: a autoridade e a vítima.

Agressiva mesmo, pra mim, é a dicotomia, perplexa, da passividade. Não só uma dicotomia de si mesma, mas uma dicotomia do papel relativo da pessoa, no caso a pessoa que pode ser agressiva, se isso for o seu lugar de defesa; Aquele onde você está legitimando o seu espaço de argumentação e onde a pessoa está te agredindo e apontando as armas. Mas se a pessoa não está combatendo na sua direção, contra a pauta onde você tem alguma voz (sempre de defesa, nunca de atuação de fato, porque a sua única posição é a inércia), então ela é uma pessoa, inclusive, que tem uma excelente atuação, e credenciais. E se precisar polir para ficar com uma sensação mais vendável, menos agressiva — e nisso leia-se mais classe, retórica, polidez e amigabilidade às pautas das pessoas mais privilegiadas — claro que se torna completamente apoiável.

Assim, consequentemente, teremos o feminismo que queremos, o feminismo de pautas grandiosas e universais e que vai atender todas as demandas da sociedade. Um feminismo do invisível, sob uma grande bandeira onde discutimos prioridades.

O feminismo do invisível onde as mulheres que não existem continuam não existindo e, se levantam mais a voz, são agressivas demais. O feminismo de quem olha tantos temas e não vê nenhum. Nem os próprios.

Eu poderia pular este interlúdio. Mais uma provocação. Talvez agora você não ache mais tão gratuita.

Nestas andanças recentes encontrei mulheres valorosas que me trouxeram, mais do que conhecimento, a bênção da agressão. Mais do que isso: em um momento, de meditação e equilíbrio (uma rotina de Tikun em Petrópolis), fui lembrada de uma das premissas importantes da meditação, que é aceitar o seu corpo e os seus sentimentos como eles são no momento. Naquele momento, eu estava muito irritada com os ruídos das pessoas. Com a incapacidade de entrega ao momento. E por mais que eu entendesse que cada pessoa ali estivesse nos seus momentos, eu só podia achar que tinha outros espaços para estar conversando naquele momento. Só aceitei a raiva.

Depois de muitos anos, me reconectei com Ereshkigal, minha divindade de filiação na bruxaria.

Dias depois, no encontro da rede de colaboradas da Universidade Livre Feminista em Recife, tive a oportunidade de conhecer outra mulher negra tão próxima e tão diferente de mim a ponto de transversalizarmos, que é Natália Maria, Kamali, que tão de fato é uma presença de Kali. Outra agressiva. Outra preta na luta por direito a mobilidade e acessibilidade (no caso, mais diretamente ligada à mobilidade, mas também na linha do invisível e das sinaptopatias — tão invisível que o termo não existe oficialmente na nossa língua, devo notar).

Pouco tive que fazer a não ser acrescentar pontos com o sentimento de não deixá-la só e também impor uma condição de acesso que não só dialogue da perspectiva da mobilidade e da deficiência física, mas também psíquica. Além de, como sempre, ser a única mulher trans, ou melhor, travestigênere, nas articulações desta importância, sem sequer mencionar dentro do recorte ciberfeminista e da relevância do trabalho da Marialab, que me leva até lá. Claro, ou melhor, escuro, sem esquecer jamais das que lutaram pela importância do reconhecimento de termos como cisgênero; felizmente tinhamos boa memória, com minha também nova boa amiga de Blogueiras Feministas Thayz Athayde, para não deixar esquecer a importância de Hailey Kaas nesse processo. Mas como somos apagadas. Por sermos agressivas. E eu sempre me lembrarei disso.

Neste outro contexto e significado — o verdadeiro, não sarcástico — do feminismo do invisível, o feminismo das pequenas coisas que parecem eternamente soterradas por interminadas grandes pautas, e construído por doses de uma interminável construção diária de uma promessa de pequenas realizações alcançadas com educação e didática que, um dia, se tornam um enorme cansaço. Estas construções não crescem. Pessoas passivas permanecem passivas. Temas relacionados são completamente invisíveis, e os próprios temas são completamente esquecidos quando são relacionados em prol desses direitos, de suas visibilizações e consciências. O que era didática, uma hora, se torna combate. Para quem luta, é só combate. Para quem está em posição de privilégio, se torna agressão.

Este feminismo, o das coisas “pequenas”: “tem pouca travesti, nem tem censo oficial”, “mas morre uma a cada 6 horas? Morre uma mulher cis a cada 11 minutos!”, “mas o feminismo negro não acolhe você?”, “você precisa ir nos rolês sapatão certo”, “ah, mas tá ruim no geral”, “você parece normal pra mim”, “você fala bem pra ser Asperger, você já se tratou então”, “você é tão elitizada pra se achar preta”, “mas agora você mora na vila madalena”, “sei lá, eu sou meio crítica com aparências”.

Este feminismo, ele talvez, apenas talvez, te leve a ver coisas tão pequenas quanto, mas que não são exatamente as suas coisas pequenas.

Talvez, só por isso, isto te torne mais crítica, mais combativa, mais interseccional de fato. Pensamento interseccional. Como Hannah Arendt incentivava, mais do que a interseccionalidade que alguns feminismos fizeram questão de estragar (como Natália bem fez questão de lembrar e concordo — tal qual fizeram com a radicalidade, que não é má em essência).

Sendo assim, mecanismo de auto-defesa, pra mim, seria tentar esquivar e dizer “não sou agressiva” e tentar usar de uma retórica. Uma retórica gratuita, cedida e alimentada por uma lógica colonizadora, esta sim, que me branqueia e me coloca numa posição de pretensa igualdade, da acadêmica que esperam de mim, como uma especialista em tecnologia, com um mestrado em tecnologia da educação a sair do forno e um doutorado em filosofia da tecnologia. Riso fácil a cair nas graças do povo. Empreendedora, artista multimídia autodidata. Este é o currículo claro que posso vender a qualquer hora.

No instante em que acordei, me lembrei imediatamente de Daft Punk e seu “Harder, Better, Faster, Stronger”. Lembram? Curiosamente, minha referência de adequação e enbranquecimento é um vídeo feito por uma produtora japonesa (foi feito pela Toei Animation) para a música de uma dupla de música eletrônica francesa. Chega um ponto na vida de uma pessoa, qualquer pessoa, em qualquer nível de opressão socioeconômica, étnico-geográfica, de gênero e sexualidade, neuropsíquica e motora— mas relaxa, é cumulativo — em que a cada conhecimento adquirido para fora do gueto te coloca pra fora dele. Mesmo que você tenha como provar por A mais B, como no caso da história da música eletrônica, em que sou muito versada, que este saber foi apropriado e colonizado e elitizado às custas da criação cultural do seu povo.

O caminho natural a esta altura é: às armas.

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Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.