Fisiocracia

Nadine
O doce roxo da celeridade
5 min readOct 1, 2017

Eu escrevi um texto sobre capacitismo aqui no Medium há meses. Por conta de uma falha, o texto jamais foi publicado. De lá pra cá muita coisa mudou na minha vida, nas minhas relações pessoais e profissionais, nas minhas atuações políticas. Talvez as únicas coisas imutáveis sejam o completo desentendimento das pessoas com relação à neurodiversidade (e também à fisiodiversidade, e sim, isso é praticamente um neologismo) e a constante cobrança por autonomia, a qual continuo não compreendendo tanto quando continuo solitária e exclusiva no desempenho da maior parte das atividades que performo, tanto quando penso na controvérsia das pessoas que criticam o que chamam de cobranças com relação ao que deveria ser diálogo responsável com relação ao cuidado e ao afeto dentro das redes de apoio.

Muito longo, (não) leia: o capacitismo é aquele irmão mais novo da meritocracia que fica sentado no canto da sala e ninguém dá uma foda. Mas deveria.

Estes meses me fizeram pensar muitos neologismos. Me fizeram pensar, e me fizeram sentir útil e inútil ao mesmo tempo, por inúmeras razões. Eu não sou a decana do movimento anticapacistista ou coisa assim, nada disso. Mas facilitar e criar diálogos mais próximos e novas pontes para que as pessoas se sintam próximas do tema e seguras dentro de suas diversidades (porque todas elas são diversas) é uma ferramenta poderosa para sair do completo desentendimento para o algum entendimento. Da mesma forma que relativo às pautas das pessoas negras e trans, o didatismo constante é, por vezes — não sejamos hipócritas — cretino. Mas no caso das expressões neuro e fisiodiversas em toda a diversidade de linguagem verbal e não-verbal, a pluridade de expressão e de criação de diminuição de distâncias é uma linguagem tão natural, inata, que não é difícil criar outras palavras, outros sons, outros gestos e símbolos visuais.

Desde o texto sobre pessoas autistas funcionais (e eu falo de um lugar de alta funcionalidade e existem vários espectros) e então alguns eventos onde falei em torno da militância anticapacitista como ponto de destaque (eventualmente por já serem eventos cujo foco primário eram outros locais de fala visíveis), conversei com pessoas que se sentiram muito acolhidas por verem o tema da neurodiversidade tratado de forma aberta, declarada. O sentir útil é esse acolhimento e esse reconhecimento nas outras pessoas. Talvez pare por aí. A auto-declaração de borderline, Asperger e depressão vem acompanhada de 100mg de Topiramato e 100mg de Bupropiona ao dia, mais a convivência insustentável que, apesar da busca por equilíbrio emocional e psicológico, me tornou fisicamente incapaz para boa parte das atividades que eu desempenhei até então. E claro, a busca pela associação química perfeita não é uma receita de bolo que se testa do dia para a noite. E o que se perde no feitio não é só farinha e ovos: noites de sono, trabalhos, dinheiro, estabilidade emocional, produtividade, amizades, auto-estima.

Em meio a tudo isso, uma sociedade doente. Foram meses insanos com tudo que se teve direito para obliterar a saúde das pessoas mais otimistas. Acho dispensável fazer deste texto uma recapitulação do noticiário nacional e mundial dos últimos 5 meses, muito embora apenas o último mês seja digno do meu melhor mestrado sobre “as relações entre a colonização das artes e a relapsia no seu ensino curricular e suas consequências na formação do caráter”. Não é vivamente possível estar bem em um mundo como este que se configura e isto é indiscutível.

Entretanto, o que me deixa desolada é ver se repetir a roda da fortuna. Se a metáfora esotérica diz exatamente sobre esforço para não sucumbir e não repetir um ciclo, é exatamente para a metáfora do começo do texto que eu volto. Desde os nossos antepassados nas senzalas, o mérito da pessoa negra é ser fisicamente capaz. Foi desse pressuposto que surgiu todo o racismo institucional que envolve a meritocracia e, observe atentamente, o capacitismo que move as relações de trabalho da negritude à branquitude. Ao negro não era direito ficar doente, e ao negro foi atribuída a “condição genética” (em inglês, “race condition”, o que piora um pouco a expressão — condição de raça). Se nem doente fisicamente, muito menos mentalmente. Se o negro é uma máquina física, obviamente não é condição do negro ser inteligente. Se o negro é inteligente, não é útil. Na era moderna, se o negro é inteligente, então ele precisa se mostrar fisicamente capaz, porque o mundo cobra pessoas fisicamente capazes.

Corra, neguim. Ah, não pode? Desculpa, vivemos em uma fisiocracia.

Ao fazer essa provocação, e refletir sobre essa estrutura de mérito psicomotor que não é uma simples ilusão de ótica e de sentido, ou uma bobagem à toa, que está só pra mim ou só para um grupo de pessoas — porque qualquer pessoa pode ficar doente e fisicamente incapaz amanhã e medir as necessidades das suas interdependências, os graus das suas autonomias, mas acima de tudo, as escalas de seus privilégios — lembro o motivo pelo qual não existe o conceito da tipicidade. Qualquer pessoa é fisiodiversa e neurodiversa em uma escala de mais a menos complexo. Não existe neurotípico nem pessoa com deficiência (aquele momento de abandonar estes termos). Existem várias pessoas não-cadeirantes com fisiodiversidade motora, como diversas pessoas com sinaptopatias musculares (aquele momento de aprender outro termo). Fibromialgia e miastenia são consideradas sinaptopatias, ou seja, anomalias de origem sináptica cuja origem ainda não foi perfeitamente determinada. Alzheimer, espectro autista e esquizofrenias em geral também são incluídos no grupo das sinaptopatias, o que torna mais fácil inclusive observar que, em algum ponto, todas têm algum grau de fisiodiversidade motora. Ainda levaria um outro texto só pra falar do capacitismo que envolve as pessoas gordas.

Sendo assim, cobranças existem, sim, inclusive entre nós. Nós mulheres, nós negras, nós feministas. Cobradas talvez não sejam mulheres cis, talvez não mulheres brancas, talvez não pessoas não-binárias lidas enquanto fisicamente capazes, ou dentro de uma das outras caixas normativas. Onde se lê “não é legal cobrar ou criar expectativas”, isso vale pra tudo, menos para as capacidades de entrega e ação relativas ao que se comunica no campo do visível, do mensurável, do palpável, do calculável. Nós, vós, eles, elas, elus. Todo mundo que parece querer comer o delicioso cupcake da desconstrução e busca a tão sonhada autonomia. De tanta necessidade de sermos fisicamente capazes de tudo, mentalmente capazes de tudo, estamos quase alcançando a autofagia. Umas mais que outras. Ainda há o direito de estar doente e autônoma em voz alta. Como bem sabemos, o silêncio e a solidão da mulher negra são serventias da casa. E para cada tom de negro, cada matiz de azul, cada gradiente que se cria entre o rosa e as outras cores nesta bandeira, é uma nota muda que se toca, como John Cage. Se 4'33" ou Imaginary Landscapes nº4, é algo a ser sentido ao invés de lido a partir daqui.

--

--

Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.