Precisamos falar sobre corpos que calam

Nadine
O doce roxo da celeridade
5 min readApr 10, 2017

Quando iniciei esta publicação, me prometi, solenemente, algo que chamei de “maturidade editorial”. Muita parcimônia, muita reflexão. Tentei argumentar e me encher da boa lógica e do bom embasamento antes de disparar o “publicar”, coisa tão comum em tempos de “textão” e mídias sociais.

Nem sempre é possível. Sou humana (renego com vigor, mas sim). Frágil. Preciso de alento. Mas a lógica segue. Não chega a ser um pedido de desculpas, mas um gancho. Ao que acho que cada texto é pontual e tem seu momento, é preciso sim de um momento de enfrentamento direto. De desabafo. Mas preciso também da reflexão profunda, ainda que em espiral, sobre toda esta talvez muito nova percepção que se abre para muitas pessoas do que, talvez, pra mim seja muito simples. E aí eu abro através deste texto um parêntese para um novo olhar sobre isso que não somos educadas a compreender: a morte.

Há uns meses, fiz uma fala para alunas, alunos e alunes do Cursinho da Poli sobre gênero, sexualidade e desejo, na companhia muito agradável de Victor Augusto (um dos criadores da página “Moçe, você é machista — a saber um homem trans) e Letizia Patriarca, mestranda em estudos antropológicos do gênero. Na ocasião em que fizemos a roda com alunos de Santo Amaro, conseguimos abordar uma quantidade de assuntos muito além do tema (aliás, pessoas muito queridas mesmo), chegando mesmo a questões delicadas de hormonização que passaram por bioética (através de uma aluna de biologia cética, e isso é ótimo, ainda mais pra uma filósofa transhumanista).

Digamos que, para uma roda de conversa simples, chegar a debater estas coisas, fora da internet, sem os preconceitos, sem as falsas premissas, desafiando a partir de saberes científicos e também vividos, foi algo inesperado. Mas para além disso, falamos sobre um tema o qual exploramos muito pouco no Brasil: a autonomia dos corpos.

A verdade é que, para a massa crítica, só existe um grupo de pessoas discutindo publicamente a autonomia dos corpos: as mulheres feministas em defesa da legalização do aborto. Depois disso, em escala muito menor, percebe-se através do meu relato que desponta a consciência de que a despatologização das identidades trans, travestis e não-binárias, em conjunto com a liberdade sobre a modificação do corpo, é uma discussão familiar a uma nova geração.

Ainda assim, isso é superficial. Ao voltar do evento, conversava com Letizia sobre outros assuntos, que me fogem um pouco à memória agora, mas lembro que, em algum momento no final, eu consegui chamar atenção para a conscientização do setembro amarelo (era exatamente 7 de setembro), e ela comentava comigo o quanto isso tinha sido importante para aquele público. E foi neste momento que falávamos sobre a importância de discutir este tema sob a ótica da autonomia dos corpos.

Pois não é uma questão de disposição à morte, mas uma questão de saúde pública, tal como o aborto, tal como tratamentos alternativos de saúde (e aí não falo de auto-medicação, mas de técnicas de auto-diagnóstico e tratamentos naturais — auto-medicação assistida sendo ainda outro tópico). Imagine a redução de danos colaterais gravíssimos ao se tratar a eutanásia e o suicídio assistido não apenas como uma questão de saúde pública como de educação fundamental. Da mesma forma que a legalização do aborto e da maconha. Aliás, da mesma forma que a educação sexual de base, incluindo-se aí educação de sexualidade, gênero e orientação sexual no currículo.

Coisas que não fazemos. Corpos que calam, corpos que são calados.

Das coisas favoritas que li na vida, uma das mais influentes foi o prefácio de Tori Amos — não bastasse ser uma cantora, compositora e pianista exímia — para “Morte: O grande momento da vida” (Death: The high cost of living), de Neil Gaiman. Porque não fala da morte da perspectiva de quem quer ou vai morrer, até porque se refere a uma personagem, um avatar da Morte. Mas fala da morte como quem convive com ela a todo instante, e lida, e ouve. E isto não apenas é poético, e lúdico; é educativo. Obviamente, isso não me faz querer morrer menos, mas me faz pensar melhor qual a minha relação com a morte, e principalmente, com a vida. E isso, definitivamente, precisa ser ensinado.

É preciso lembrar, acima de tudo, que a condição de quem nutre ideação suicida é psíquica, independente de seu estado físico. Em ambos os casos, seja na ótica da eutanásia quanto do suicídio assistido, ou quando você não possui qualquer apoio, o contexto é de uma pessoa que não está sendo adequadamente amparada em seu quadro biopsicossocial. Entretanto, a morte, independente de acaso, vai além de qualquer conduta médica ou medicamentosa, e nem sempre se basta em apoio e ações afirmativas. Por isso, não muito obstante, quando o ato é concretizado é preciso lembrar-se o porquê de não haver, de fato, uma lacuna onde se é questionada muitas vezes a ausência de motivos. Sempre ouço: “mas parecia bem” ou “não tinha motivo aparente”. E aí, voltamos à essência desta relação: a autonomia. A liberdade na relação e também em reconhecer que, talvez, tudo tenha sido feito; e tudo bem. E o contrário sempre acontece: quando nem tudo foi feito, é possível sim continuar.

O maior diferencial no apoio de pessoas que passam por ideação suicida é saber compreender que elas possuem capacidade de discernimento e o apoio é emocional, e não operacional. Ajudando a pensar cada aspecto do que as faz refletir sobre as relações de vida e morte com mais calma para que, se possível ter uma vida mais organizada, a morte seja menos frequente.

E por fim, educar sobre o tema é também uma questão de ter mais equilíbrio com relação à morte do próximo. E quem sabe resolver questões que vão mais além da nossa consciência individual. Ainda breve, houve a perda de um ente de uma pessoa muito querida. Indo ao velório, após anos em que não entro em um cemitério para um rito, caminhava em meio às lápides e me pego pensando: a quem ainda serve a infraestrutura funerária no nosso século? Por anos ela foi mantida para resolver um problema de saneamento urbano, compreensível. Há milênios, nem era algo: os rituais eram familiares, particulares, como de fato deveriam ser (e de certo modo são). Mas hoje mesmo ainda nos prendemos a uma educação que nos é vendida de um modo muito particular e enviesado. Talvez, tenhamos tecnologia e até mesmo autonomia, com todas as discussões e desconstruções que temos feito em prol de um mundo mais igualitário, para criar mecanismos em que resolvamos algo que hoje é um problema urbano e, diria, sectário. Mas isso fica para outro texto.

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Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.