4 mitos sobre pessoas AAF em uma conversa rápida

Nadine
O doce roxo da celeridade
5 min readFeb 5, 2017

1. Pessoas AAF não têm emoções

foto: Death to the Stock, Tactile

Pessoas autistas de alta funcionalidade (AAF) possuem dificuldades em expor emoções. Eu estou tendo dificuldades em expor neste momento por estar presa à falta da palavra exata que possa exprimir o sentimento exato da dificuldade.

Estou tentando seguir o paradigma “o ótimo é inimigo do bom”, mas ele raramente se aplica a autistas de alta funcionalidade, porque não é sobre ser perfeito, mas a ausência de uma forma de expressar de forma acurada um sentimento, seja com palavras ou com outras formas de expressão não-verbal, causa muita dor. Eu inicio este texto logo após um sentimento de frustração muito forte com um momento que tinha tudo para ser muito simples e estúpido para qualquer pessoa.

Para deixar claro, embora isso por si só merecesse um destaque especial: pessoas autistas não são apenas autistas, elas podem ter qualquer outra dificuldade neurológica ou física ou estarem enquadradas em qualquer outro perfil de minoria que dificulte seus níveis de convívio social e nada disso é exclusivo.

Eu acabo de me descobrir também com um diagnóstico de transtorno de personalidade limítrofe (borderline). Isso, somado ao fato de ser uma mulher trans e autista, é um gatilho de uma bomba de implosão de alto poder destrutivo.

Um detalhe fora do lugar às vezes pode ser muito difícil de lidar. E por conta de uma falha de comunicação com um moço na rua, conhecido do cotidiano, pessoa super gentil que inclusive estava tentando me dizer que havia um pedaço de lenço de papel que tinha grudado na minha jaqueta, eu acabei tirando o lenço da minha cabeça que levei longos minutos para ajeitar e que tinha sido um fator para conseguir arrumar o cabelo e sair de casa.

Estragou o dia e fiquei com o sentimento reprimido, mas ainda assim aparentando a completa falta de raiva e uma expressão neutra de normalidade, porque talvez fosse muito mais difícil colocar em uma expressão facial todo este texto. E isso deixa margem para um outro ponto importantíssimo.

2. Pessoas AAF não “pensam demais”

Você, pessoa neurotípica, vai se sentir provocada neste momento por esta frase. Mais ainda por eu me “contradizer” em seguida. Pensamos bastante, mas não porque queremos.

A verdade na situação acima é que levei um tempo que qualquer pessoa consideraria totalmente aceitável para decidir pegar um lenço no guarda-roupa, arrumar o cabelo e usar. Aplique um pouco a mais ou a menos de destreza, praticidade de cada pessoa para se arrumar, mas dentro de um limite comum. Porém, todo o nosso processo cognitivo é bastante desgastante.

Death to the Stock

O processo criativo, o código visual, que dialoga em cores, sentimentos, humores, texturas, e comunica isso de algum modo, além de uma questão estética. E tudo isso muito rápido. Sim, tudo isso é levado em conta.

Além disso, uma boa parte dos autistas de alta funcionalidade possuem uma coordenação psicomotora bastante frágil. A maior dificuldade deste processo foi fazer um simples nó no lenço, então imagine que o mais desolador foi o nó ter desfeito e não o simples fato de o cabelo estar desarrumado ou coisa parecida. É horrível.

Agora, imagine quando uma pessoa AAF realmente leva tempo para raciocinar e responder uma pergunta. Imagine a quantidade de variáveis que está sendo colocada em jogo.

Como boa parte de nós tem uma ligação intensa com a sinestesia, a ligação com o ambiente e com o que sentimos e o que tentamos avaliar dos sentimentos das pessoas é sempre levada em conta, é como uma análise comportamental elevada à quarta ou quinta camada de bordas (para quem gosta do tema de investigação forense, ou constelações).

Gostaria muito que, a partir disso, você, pessoa neurotípica, tentasse não se importar demais com a cadeia de raciocínio de uma pessoa, mesmo quando não souber que ela é uma autista de alta funcionalidade, independente se a pergunta é sobre um grande projeto profissional ou apenas o menu do jantar. O que nos leva ao próximo lembrete amigo.

3. Pessoas AAF compreendem a simplicidade da vida

Death to the Stock

Apesar de tudo isso, nós sabemos, sim, que, para a maioria das pessoas, e na maior parte do tempo, não é preciso tantas cores para responder a todas as perguntas.

Não é como se nós pudéssemos controlar isso, mas nós entendemos sim. Algumas perguntas são simples como sim e não. “Sim, quero” e “não, não, quero” bastam muitas vezes. Ou, para o caso do menu, um “poderia ser peixe” bastaria pra dias típicos, muito embora qualquer dia da minha vida possa ser definido de forma muito detalhista como “eu pensei em abadejo” ou “pro almoço hoje acho que a textura de uma tilápia a dorê com molho mediterrâneo cairia muito bem”.

E isso é muito natural, não é premeditado, isso é um sentimento como feliz ou ansiosa, e nos dias em que eu estou hesitante e me dão escolhas sobre onde eu quero almoçar eu defino meus almoços com base no meu humor e isso tem a ver com a textura do alimento e a cor e com detalhes como a projeção da luz no ambiente e o som e as pessoas.

Mas ainda assim eu posso responder “vamos comer hambúrguer” ou “acho que é melhor PF” se isso não for influenciar no resultado final. Porque é preciso entender pra quem vai fazer a diferença crítica. E se é sobre o grupo, e isso não vai afetar as minhas emoções diretamente, pode ser simples. Não estamos tentando controlar o ambiente em busca da perfeição. E por falar nisso…

4. Pessoas AAF não estão certas o tempo inteiro

Eu ouvi isso o tempo todo. A vida toda.

Temos este “jeito de falar”, que as pessoas julgam sem emoção. Somos pessoas julgadas prolixas, por falta de uma forma objetiva de expressá-las. E então não somos pessoas diretas, e somos pessoas pedantes, e estamos tentando falar coisas complexas sem propriedade, caso você seja chef e esteja realmente questionando se tilápias realmente vão bem com molho mediterrâneo e cozidas a dorê. Eu realmente não sou chef de cozinha, mas eu sinto o sabor terroso disso e pra mim, só pra mim, faz todo sentido. Não faço mesmo ideia se estou certa ou errada, e se for por uma questão de ego, me desculpe. Sempre foi assim.

É a realidade de toda e qualquer pessoa autista de alta funcionalidade mas também de toda pessoa neurodiversa com alta funcionalidade. A realidade de quem está tentando dialogar um misto de vivências de conhecimentos adquiridos e sentimentos latentes, pulsantes, vibrantes. Quando precisam ser ditos, muitas vezes se sobrepõem, se atropelam. Por vezes precisam ser transcritos com arte, música, telas, esculturas, códigos, manipulando o ambiente físico, virtual, com abraços, com gritos. Pessoas AAF não são a ciência, porque a ciência sequer é capaz de determiná-las com precisão.

Não estamos em busca de aprovação constante, e não precisamos disso. O que buscamos apenas não tem nome nem forma e nem cor. Mas é lindo como sentimos.

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Nadine
O doce roxo da celeridade

Centuricórnio biquartil revoprismática seria uma definição mais honesta que as sugeridas pela língua mátria. Interpretações são subjetivas.