A esquerda não está acima das discussões. Está na hora de se dar conta disso

Igor Natusch
O Esforço Diário
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3 min readMay 16, 2016

Um dos meus maiores bodes com boa fatia da esquerda brasileira é o cacoete de querer ditar caminhos, sem buscar que suas ideias e teorias dialoguem com a realidade das pessoas. Essa onda conservadora que testemunhamos não é simples maldade das pessoas, esse fenômeno do “jovem liberal de redes sociais” não é pura vontade de ser diferente do status quo (que é há mais de uma década o PT, logo uma visão originalmente de esquerda, tenha se distorcido o quanto se distorceu pelo caminho). Estamos fora de debates fundamentais pelo pior motivo possível: a pretensão trouxa de que a superioridade dos nossos argumentos está posta, de que estamos acima da crise e dos problemas que surgem do colapso.

Olavo de Carvalho é um cidadão pelo qual nutro desprezo em quase tudo, mas não posso dizer que nunca aprendi nada com ele. Foi observando o modo como ele argumenta desde o fim dos anos 1990 que aprendi muito sobre como, no terreno das ideias, a lábia do vendedor não raro importa mais que o peixe que se está vendendo. Não me dou ao trabalho de lê-lo há vários anos, mas o que ele citava de autor obscuro que eu depois ia olhar e via que estava citando errado ou enviesado era uma enormidade. O recurso ao obscuro sempre foi uma ferramenta essencial na retórica de Olavo — e de fato é uma ótima ferramenta para quem não domina conceitos, já que sempre desvia a discussão para terreno amigável e ainda permite o convencimento do interlocutor por meio da falsa erudição.

Como se combate isso? Como se enfrenta o argumento de autoridade vazio, como devemos nos opor ao meme mentiroso ou ao economicismo que invade e não raro contamina as outras leituras sobre o mundo — ou, em última análise, como se enfrenta o fascismo sem vergonha de si mesmo que já entrou na nossa sala, sentou no nosso sofá e cuspiu no chão sem cerimônia? Com um peixe melhor, vendido a preço justo e de forma que possa ser compreendido e debatido de forma ampla. Insistindo nas ideias e sim, dominando os conceitos.

A esquerda está mal acostumada. Tem que ler sobre economia sim. Do contrário, será arrastada para terreno onde não sabe pisar, será exposta a um vocabulário que às vezes nem quem usa entende direito, mas pode fingir que entende sem contestação. Não sou especialista na escola austríaca, nunca li Mises a fundo, mas o pouco que li já revela como alguns (não todos, nem a maioria, mas alguns) vendem ideias e leituras que são pessoais (e não raro risíveis do ponto de vista teórico) como se fossem do autor. Vimos muito isso (e especialmente nos últimos tempos) na esquerda, onde Marx e Gramsci, por ex, sofreram “releituras” totalmente disparatadas. Acho que todo mundo na esquerda (eu incluído) tem que deixar a empáfia de lado e estudar o que não conhece, sim senhor. Não sou fã do Ciro Gomes, nem acho ele um expoente do que quer que seja, mas nisso ele está certo (como numa série de coisas ultimamente): é dever de quem preza o pensamento e a discussão de ideias dominar esses vocabulários.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.