Chegou a hora de Neymar deixar de ser Júnior

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
5 min readJul 16, 2018

Antoine Griezmann pretextou uma falta em final de Copa do Mundo. Até que o craque da França foi mesmo atingido pelo adversário croata, mas claramente interpretou um choque muito maior do que de fato sofreu. Talvez a infração nem tivesse sido marcada, não tivesse o francês feito um cinema daqueles. Resultado: bola alçada na área, desvio de Mandzukic e gol contra. França abrindo o placar, primeiro passo na vitória que rendeu aos Bleus seu segundo título mundial.

Indignação? Quase nenhuma. Uma que outra reclamação da Croácia após o jogo, mas algo tímido, nada de outro mundo. Fora isso, alguns lamentos e ironias em redes sociais. Nada além disso. Segue o baile.

“E o Neymar?”, perguntam muitos. Afinal, todo mundo sabe como o craque brasileiro saiu esculachado da Rússia. Para muitos, sua reação dolorosa em vários lances (mesmo quando a agressão claramente ocorreu, como no pisão sofrido contra o México) foi cinematográfica, apelativa e ridícula. Neymar virou meme, gerando todo tipo de piada — e também ouvindo poucas e boas de comentaristas esportivos do Brasil e do exterior. Outros o defenderam, com igual paixão — e são esses, em sua maioria, que agora exigem do mundo a isonomia. O europeu caucasiano passa sem críticas, então por que o brasileiro terceiro-mundista de pele escura tem que ser tirado para Cristo?

Não acho que o argumento discriminatório seja vazio de sentido. Mas também não acho que esteja aí a explicação decisiva para a diferença nas reações. O problema está na imagem pública de um e de outro, isso sim. E nisso Neymar pode não ser exatamente culpado, mas também não dá para fingir que ele não tem nada a ver com isso.

Griezmann tem uma imagem jovial. É o cara que comemora gols fazendo hang loose, que brinca jogando água disfarçadamente nos companheiros durante os treinos. Mas, ao mesmo tempo, é uma figura de grupo, que se entrega em todos os jogos e faz chover em um time que enfrenta, tal Dom Quixote, os gigantes superlativos do futebol espanhol e mundial. E é um cara capaz de, em plena coletiva após ganhar o Mundial, colocar uma bandeira do Uruguai nas costas, para homenagear amigos de clube contra os quais sequer comemorou seu gol nas quartas de final. Em suma, Griezmann é, publicamente, um jovem boa praça. Um bom rapaz. Gente boa.

A imagem de Neymar é bem diferente. No imaginário coletivo, ele é um menino mimado. Birrento. Que faz o que quer. E que precisa receber uma lição. Precisa ver o que é bom para tosse. Para deixar de ser criança e amadurecer.

Essa imagem ruim vem desde o Santos, quando xingava treinador que tentava tirá-lo de campo. Hoje, é visto como um cara que se volta contra colegas no PSG, que tentou negar ao ídolo e líder Cavani o direito de cobrar pênaltis, que vê o clube abaixo de si próprio. É um craque que se lesiona e vem se tratar no Brasil, distante do clube que paga seu tratamento e passando uma forte imagem de descompromisso. Na seleção, apesar dos muitos gols, é visto como alguém que perde o controle emocional com frequência, ao ponto de ser expulso depois do apito final e ficar fora de um jogo decisivo de Copa América. É alguém que está frequentemente na mídia, que não nega um holofote, que valoriza a si mesmo acima de todas as coisas. Um menino, ou melhor: um moleque. Que é sempre paparicado onde quer que vá, que sempre tem um adulto disposto a contemporizar seus muitos erros. Alguém que parece se divertir diante dos nossos olhos, mas não junto com a gente. E que ainda por cima se faz de vítima, rolando no chão e urrando de dor a cada choque aparentemente insignificante. Tentando enganar todo mundo.

Nada disso precisa ser verdade. Ou melhor dizendo, tudo isso é mais ou menos verdade, mas não significa que juntar esses pontos nos faça entender quem Neymar de fato é. Que posso eu dizer sobre ele? Não conheço o ser humano. Quem de nós conhece? Posso apenas falar da impressão que sua figura pública nos causa. Do mesmo modo que não faço ideia de quem Griezmann é longe das câmeras, apenas do que se mostra diante delas. E tudo isso, no fundo, não importa: a imagem pública é a única percepção que nos é possível, e é sobre ela que construímos nossa benevolência ou antipatia.

Futebol nunca foi jogo de bons moços (ou pelo menos não é, há várias décadas). O menino Neymar não inventou a simulação. Mas não faz sentido ver a antipatia como uma simples injustiça, uma balança torta que pesa mais para o lado dele só para prejudicá-lo. Não é por acaso, por exemplo, que a maioria das propagandas relativas à Copa trazia a imagem de Tite — adulto de cabelos brancos, sério mas não sisudo, capaz de passar a impressão de competência e trabalho com um discurso de Leandro Karnal aplicado ao futebol. E não é por acaso que, derrotado em Copa do Mundo, Tite receba a voz generosa de multidões sugerindo que, ainda assim, ele deve permanecer no comando da seleção. Tite é mais simpático aos brasileiros que Neymar — e isso faz com que o atacante seja, em consequência, menos interessante para quem quer ganhar dinheiro com as paixões da massa. Como perdigueiros, farejam no ar a mudança de vento. E o vento não está para Neymar, alguém que foi para a Copa cobiçando o título de melhor do mundo e sai dela como um menino chorão que não ganhou nada e do qual todos riem.

Tivesse eu poderes ilimitados, faria uma varredura em todo o Brasil, da casinha mais ao sul ao vilarejo mais remoto no extremo norte. Vasculharia toda e qualquer residência, em busca de camisetas com a inscrição “NEYMAR JR” às costas. Promoveria uma caça ao redor do globo, localizaria cada pedaço de tecido que tenha, em algum momento, estampado esse conjunto de letras. E incineraria todos eles, até a última fibra, até que a própria fumaça se dissipasse e pudéssemos todos esquecer que esse tipo de vestimenta chegou um dia a existir. Porque penso que é disso que Neymar precisa se libertar, e é disso que todos nós deveríamos nos desvencilhar também. Não que o simples poder de duas letras fora de lugar seja capaz de transformar um homem em um eterno menino, mas não podemos mais correr riscos.

É hora de Neymar virar adulto, ou, pelo menos, parecer virar adulto: deixar para trás todos os tapinhas nas costas, todos os paparicos e condescendências, abraçar para si todos os aspectos de ser o centro das atenções, inclusive (e especialmente) os mais penosos. Neymar não pode mais ser ou parecer Júnior, em suma. É o melhor para ele, e será o melhor para o futebol brasileiro, que não pode se dar ao luxo de não incluí-lo em seu panteão de grandes heróis.

Foto: Elma Onik / UN Photo

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Igor Natusch
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Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.