Cinco horas não são privilégio algum: uma resposta a Rosane de Oliveira

Igor Natusch
O Esforço Diário
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4 min readSep 19, 2015

Não é meu interesse fazer um ataque contra Rosane de Oliveira. Mas ela é uma colunista de grande expressão, escreve e comenta para alguns dos principais veículos de imprensa do Rio Grande do Sul, muitas vezes falando com alcance nacional — e quando ela diz alguma coisa, seja lá o que seja, suas palavras acabam ganhando dimensão, espaço, repercussão. Para muitos, viram representação imediata da realidade. Eu não tenho um vigésimo do espaço e da abrangência de Rosane de Oliveira, mas gostaria de fazer um breve contraponto a um comentário feito por ela em sua conta pessoal no twitter, no último dia 18 de setembro. O print está logo abaixo.

É a opinião dela. Respeito profundamente o direito dela ter essa opinião, mas me sinto na obrigação de dizer que ela está profundamente (quase tragicamente) equivocada.

Primeiro: um repórter que faça 5h diárias de trabalho é raridade que se conta nos dedos da mão, tanto no RS quanto no Brasil afora. A maioria faz bem mais que isso: é muito comum colegas de profissão fazendo 8h por dia ou ainda mais, ganhando o que está estabelecido pelo dissídio como piso para 5h de trabalho ou no máximo um pouco mais. Hora extra (não remunerada) é mato. O acordo coletivo prevê um dia de fim de semana trabalhado a cada duas semanas, com folga correspondente durante a semana. Algo que qualquer repórter poderá confirmar que simplesmente não bate com a realidade, geralmente de plantão durante todo o fim de semana, às vezes em fins de semana consecutivos, com compensação inadequada ou simplesmente inexistente. Ou seja, se a jornada de 5h é um “privilégio”, como argumenta Rosane de Oliveira, é daqueles cujo sabor pouquíssimos jornalistas brasileiros têm o prazer de usufruir, mesmo parcialmente.

Segundo: jornada de 5h para jornalista não é um absurdo, de forma alguma. Já exerci durante bastante tempo a atividade de repórter diário, tanto como “privilegiado” quanto cumprindo carga horária mais pesada, e posso atestar a vocês: é uma atividade bastante desgastante. Para ser bem exercida, ela envolve deslocamentos constantes, preparação, estudo permanente, esforço intelectual, pesquisa, habilidade de expressar-se em diferentes formatos. Requer enorme responsabilidade ética, além de capacidade de resistir a variados tipos de pressão. Qualquer pequeno erro pode ter consequências graves. Nada disso é um lamento da minha parte, ao contrário: é uma atividade fascinante, quase viciante, que eu pessoalmente encaro com entusiasmo e tesão sempre que tenho a oportunidade de exercer. Mas cansa. Ao final de 5h pegadas de trabalho, o cidadão ou cidadã que usufrui do “privilégio” está desabando de cansaço, podem acreditar — e lembrem que a média não é essa, e sim de pelo menos duas ou três horas a mais por dia. Considerando o valor baixo do piso do jornalista no RS (R$ 1.955,90 em Porto Alegre, R$ 1.665,50 no interior), exigir 5h diárias está bom até demais. É inconcebível qualquer aumento de carga horária sem uma ampliação considerável no que é pago ao profissional — que já é pouco, insisto.

Não sei o que leva Rosane de Oliveira a ter essa equivocada visão a respeito do trabalho de seus colegas. A mim, passa uma impressão forte de desconhecimento — o que, friso de forma imediata, não faço a menor ideia se é ou não o caso. Posso estar errado, e quem sabe ela tenha alicerces factuais e intelectuais sólidos para esse comentário — limitado no caso a míseros 140 caracteres, o que prejudica o contexto e longe está de ser a dimensão adequada para o efetivo desenrolar de qualquer tipo de argumentação. Mesmo que não os tenha, é seu legítimo direito pensar exatamente como pensa, e longe de mim querer dela qualquer tipo de mudança em sua postura. Mas é preciso que seja dito: o comentário está profundamente errado tanto a respeito do dia-a-dia de quem abastece jornais, rádios e sites de notícia quanto às reais exigências que os veículos fazem a seus profissionais, distantes (para pior) da realidade que a colunista parece considerar privilegiada.

O maior erro da breve fala de Rosane, na verdade, é passar ao leitor médio (que, é claro, não tem a menor necessidade de saber como é a rotina de um jornalista) a impressão de que o trabalho em uma redação é uma barbada, de tal forma que a exigência de 5h diárias pareça uma concessão exagerada que precisa ser revista. Talvez seja uma maneira de justificar a onda de demissões que atingem veículos de imprensa em todo Brasil, com redução dramática das redações e inevitável precarização — afinal, estariam sendo concedidas coisas demais aos repórteres, gerando encargos que as empresas simplesmente não teriam condições de atender.

Espero que não seja esse o destino final da argumentação em questão, porque aí estaríamos indo além do erro, flertando perigosamente com coisas mais graves. O modelo empresarial de negócios aplicado ao jornalismo é inerentemente caro e dispendioso, e sua incapacidade de dialogar com os novos anseios da opinião pública gerou um beco sem saída — algo que pouco passa pelo custo dos funcionários e que apenas pontualmente se beneficia tanto de cortes de pessoal quanto de um eventual aumento da carga horária. É uma discussão longa cujas dimensões simplesmente não cabem aqui, mas também por esse lado falar que 5h são “privilégio” mostra-se algo descolado da realidade. Há coisa imensamente pior que ser jornalista em uma redação, nenhuma dúvida quanto a isso; mas esse fato não faz com que a realidade do repórter diário seja boa, nem transforma a precarização do que já não está bom em uma ideia iluminada.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.