Cunha preso: até é bom, mas pode ser bem ruim

Igor Natusch
O Esforço Diário
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5 min readOct 20, 2016
Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

“Viva a Lava-Jato!”, disse em seu perfil de Facebook Luciana Genro, ex-candidata do PSOL à presidência, após a prisão de Eduardo Cunha. Uma frase que, é claro, provocou muita comoção nas redes sociais, em especial no espectro mais à esquerda nas discussões. Não é uma posição que me surpreenda — afinal, o discurso contra a corrupção sempre esteve dentro do partido, e quem viu Luciana seguidamente dizer que “tinha as mãos limpas” na campanha pela prefeitura de Porto Alegre percebe que há um esforço para reforçar essa bandeira. É uma opção, da qual me distancio em mais de um sentido, mas que não é ilegítima em si mesma, pelo contrário.

Seja como for, permitam-me discordar de Luciana Genro. Não dou vivas à Lava-Jato ou à prisão de Eduardo Cunha, nos termos em que ela se deu. Acho, inclusive, que temos motivos consideráveis para preocupação a partir dela.

Penso que a detenção de Eduardo Cunha segue a mesma toada de tantas outras efetuadas, com diferentes níveis de espalhafato, em nome da Lava-Jato. No texto que justifica a ação, o juiz Sérgio Moro diz que, mesmo não sendo mais presidente da Câmara ou mesmo parlamentar, Cunha seguia representando risco à investigação e até mesmo à segurança nacional. Uma afirmação que requer elementos não apenas significativos, mas novos — afinal, o STF teve a mesma oportunidade de deter Cunha e, após seis meses de pretensa apreciação, julgou que o afastamento da presidência seria suficiente. O que poderá Eduardo Cunha, sem o poder de parlamentar, fazer para atrapalhar as investigações que justifique uma ação mais drástica do que a que o Supremo julgou suficiente, quando ele tinha todo o Congresso dançando por sua música? Fora o dito sumiço de dinheiro associado a seu nome, nada indica concretamente (e prestem atenção nessa palavra, por gentileza) que Cunha esteja atentando ou prestes a atentar contra o processo legal — e sem essa demonstração, a balança deve pender para o acusado. Mesmo sendo ele Eduardo Cunha.

Além disso, o juiz afirma existir risco de fuga do acusado, alegando que ele tem dupla nacionalidade (o que, sozinho, não é indício de coisa alguma) e que possui recursos no exterior (que não aponta onde estejam) capazes de bancar essa fuga. Estava fugindo? Não, mas poderia fazê-lo, diz o despacho de Moro. A isso, qualquer gaiato responde: e poderia não fazê-lo também. Onde estão os indícios de que o faria, que justificariam a necessidade de mantê-lo encarcerado por tempo indeterminado? Ora, como até as aranhas dos almoxarifados da Polícia Federal sabem a essa altura, prisões cautelares por tempo indeterminado, como a de Cunha, têm sido usadas por Moro para forçar delações premiadas — um procedimento que muitos juristas qualificados (como Lenio Streck e Aury Lopes) consideram uma ilegalidade à beira do inconstitucional.

Sou apenas um leigo em questões jurídicas, sem nenhuma qualificação para ser categórico quanto ao assunto. Minha opinião pode muito bem não valer coisa alguma. Mas aqui está ela: acho que Eduardo Cunha está preso sem que tenha sido comprovada a necessidade real (que talvez até exista) de prendê-lo, ou seja, sem respeitar os direitos fundamentais não só do acusado, mas de toda a sociedade brasileira. Um procedimento que está longe, bem longe de ser exceção lá para os lados de Curitiba.

Percebam que aqui nada digo sobre a figura de Eduardo Cunha ou sua culpabilidade. Inúmeros indícios existem de que se trata de um gângster, um criminoso que muito lucrou com ilegalidades e que só fazia mal à República, em todos os sentidos. Não nego que a prisão me causa tudo, menos piedade por sua pessoa. Se houver justiça (com minúscula) no mundo, penso que passará anos na cadeia. Mas pessoas não devem ser presas apenas porque merecem, por mais que assim desejemos: devem ir para o xilindró sim, mas como consequência de um processo legal sólido e adequado. De um bom funcionamento da Justiça, com maiúscula. E não consigo perceber esse bom funcionamento na cautelar contra Eduardo Cunha, nem em muitas outras solicitadas em nome da Lava-Jato — pedidos que não me parecem sólidos, e cuja única adequação (se é que assim podemos falar) é subjetiva, de resposta à sociedade em uma cruzada moralizante contra a corrupção. E eu não sei vocês, mas eu quero a minha Justiça justa, não justiceira ou moralista.

Dito isso tudo, o que estamos de fato comemorando quando celebramos a prisão de Cunha? Devemos nos sentir à vontade com uma justiça que deixa dúvidas sobre ser Justiça de fato? Uma aplicação subjetiva e moralista do Direito, onde promotores e juízes passam a impressão de que mais importa expurgar pecados coletivos do que denunciar e punir criminosos, é positiva a médio e longo prazo? E aqui volto a Luciana Genro e sua alegria pela prisão de Cunha. Pode ela se alegrar à vontade, é claro — mas sua alegria me parece bem mais política do que jurídica, digamos assim. É isso, penso eu, que corrompe o Direito: que ele seja reinterpretado ou relativizado indefinidamente em nome de um fim, seja o combate à corrupção, a destruição de reinados políticos ou qualquer outra coisa.

É claro que há algo de animador em ver mega-empresários e políticos de alta influência presos ou na iminência disso. O país precisa de ações inibidoras de corrupção, isso ninguém em sã consciência haverá de negar. Ainda assim, e embora eu certamente não odeie a Lava-Jato, não consigo de forma alguma dar vivas a essa operação. Digamos que, no momento — e cada vez mais — minha posição é desconfiança e desconforto diante dela. Não sei o que esperar, não sei que tipo de cenário jurídico e social surge a partir dela, e o que vejo não me parece indicar coisa boa. Pessoalmente, penso que o prazer de ver o malfeitor preso não compensa o gosto estranho de ver a Justiça sendo esgarçada para que isso ocorra. Então, se as fileiras estão formadas para o aplauso, à direita, ao centro e à esquerda, peço que me concedam o direito de sentar do lado de fora e ficar quietinho, porque algo me diz que isso não vai acabar bem.

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Igor Natusch
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Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.