Deixe o Sartori para lá: vamos falar sobre a Pedra de Singapura

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
7 min readJan 15, 2017
Foto: Guilherme Santos / Sul21

Caso vocês não saibam, temos aqui no Rio Grande do Sul um plano quase concretizado de extinguir tudo que promove cultura e conhecimento dentro do poder público estadual. Desde a Fundação Piratini, com a FM Cultura e a TVE, até órgãos fundamentais de pesquisa como a Fepagro (que levanta dados sobre agricultura, o principal nicho econômico do Estado) e a Fundação Zoobotânica, passando pelo inestimável trabalho estatístico da FEE, que pessoas ligadas ao próprio IBGE já declararam insubstituível. A alegação — sempre ela — é de que é necessário cortar recursos, pois o Estado vive uma crise financeira gravíssima. Inúmeras figuras da cultura e do progresso científico do Estado têm apontado a asneira que está prestes a ser feita, mas seus apelos são recebidos por nossos excelsos governantes com um desinteresse que beira o desprezo, quando não com truculência antidemocrática. Não temos dinheiro para segurança nas ruas, vamos ter dinheiro para ficar tocando música no rádio ou cuidando de plantinhas no Jardim Botânico?

Nem vou entrar na discussão sobre os valores supostamente economizados (irrisórios diante da dimensão do rombo nos cofres), em comparação com o prejuízo imenso e potencialmente irrecuperável dessas extinções. Tampouco vou me esmerar em rebater a desonestidade intelectual que é tomar uma decisão absolutamente ideológica e disfarçá-la com um véu finíssimo e pobre de necessidade inadiável. Nem mesmo vou perguntar repetidamente em qual lugar do planeta esse modelo ignorante e obtuso de “austeridade” que querem implantar no Rio Grande do Sul e em todo o país (e que, é claro, nunca exige que os realmente ricos sejam austeros) gerou progresso a médio ou mesmo a longo prazo. Não é meu desejo falar sobre nada disso.

Eu vou falar sobre a Pedra de Singapura, isso sim.

Foto: National Museum of Singapore

Tenho certeza que, se alguém colocasse a Pedra de Singapura diante do nariz do nosso douto e extremamente culto governador gaúcho José Ivo Sartori, ele enxergaria nada mais do que uma pedra. Talvez, movido pelo senso de praticidade que lhe é peculiar, propusesse fazer uso dela como peso para manter a porta de seu gabinete aberta, ou pedisse que alguém usasse um cinzel para transformá-la em um utilíssimo tijolo. Felizmente, a visão em Singapura é diferente, e essa relíquia é tratada como um dos principais tesouros do país. Se alguém propusesse ao governo de Singapura vender a pedra e usar o valor obtido para investir em educação ou saúde, provavelmente seria escorraçado porta afora a pontapés. O que eu, pessoalmente, acho que seria bastante justo.

A Pedra de Singapura é, na verdade, um dos fragmentos restantes de uma grande laje de arenito, depositada por uma civilização ainda não plenamente conhecida na foz do Rio Singapura. Calcula-se que o monumento, que tinha 3m por 3m aproximadamente, tenha sido ali erigido em torno do ano 1000 da era cristã, e que ele remeta a uma lenda local bastante antiga, onde um homem chamado Badang tornou-se famoso por sua força prodigiosa. Quando de sua morte, esse Hércules do oriente foi homenageado com dois pilares de pedra, plantados na nascente de um grande rio. A laje trazia cerca de 50 linhas de inscrições, em uma língua desconhecida e até hoje não decifrada, possivelmente uma versão bastante antiga e arcaica do javanês, e supõe-se que descrevia em detalhes os muitos feitos do singular Badang. Foi encontrada em junho de 1819, por uma expedição inglesa que preparava a chegada de Sir Stamford Raffles, que mais tarde seria o fundador da Cidade de Singapura. Ao encontrarem a laje, os marinheiros bengalis da expedição se encheram de horror e cruzaram os braços, recusando dar continuidade ao trabalho de limpeza do terreno. Coube a alguns chineses darem cabo da tarefa — ainda assim, só depois de receberem aumento substancial no soldo.

Durante quase 25 anos ficou a laje ali, esperando por olhares atentos que pudessem decifrar os escritos e dar à estrutura sua real dimensão histórica. Alguns esforços iniciais chegaram a ser feitos, mas Singapura era um local terrivelmente remoto, de modo que quase nenhum estudioso conseguiu chegar ao local nesse relativamente curto período. É então que surge na história o sábio e ilustre capitão D.H. Stevenson, cidadão sem dúvida de inúmeras luzes, que tinha entre suas tarefas a construção de um forte na foz do rio, estrutura que incluiria um agradável bangalô para si próprio. Pois o douto Stevenson olhou aquela laje em seu caminho e, mesmo diante do esforço de dissuasão de pessoas próximas, deu a ordem: que dinamitassem aquele negócio de uma vez. Estava atrapalhando o progresso da empreitada britânica, ora pois. Diz-se que a decisão foi, em parte, movida por capricho, já que o capitão interpretava os questionamentos em torno da preservação da laje como uma forma de insubordinação. Uma tremenda injustiça, claro, já que o capitão D.H. Stevenson era uma pessoa sábia, preparada e que só tinha em mente o bem de toda a coletividade, que certamente precisava bem mais de um forte do que de uma laje de arenito que ninguém conseguia sequer ler, que dirá usar de alguma forma.

Em janeiro de 1843, completou-se a tarefa. Conta-se que, após a destruição do incômodo monumento, alguns blocos maiores viraram cascalho para a pavimentação de uma pequena estrada. Um escriba da época descreveu as medidas como “um ato de vandalismo”; outros, imagino, terão aplaudido o senso prático do desprendido capitão Stevenson. Seja como for, ao saber que tinham dinamitado a laje, o tenente-coronel James Low — um romântico, daqueles que acha que cultura e conhecimento têm alguma importância em tempos onde é preciso construir fortes na boca de uma rio — juntou com as próprias mãos os poucos fragmentos legíveis que pôde carregar e deu um jeito de fazer com que fossem enviados ao museu da Real Sociedade Asiática, em Calcutá, na Índia. Um desses fragmentos seria, muitos anos depois, entregue em empréstimo permanente ao governo de Singapura, e é hoje a Pedra da qual estamos falando. Os outros nunca mais apareceram, mas deduz-se que ainda estejam em posse do Museu da Índia, talvez perdidos sem catalogação em algum depósito da instituição.

Ilustração dos três fragmentos da laje do rio Singapura, resgatados pelo tenente-coronel James Low . A Pedra de Singapura é o terceiro — Foto: J.W.Laidlay / Journal of the Asiatic Society of Bengal

Hoje, esse pedaço inútil de uma laje que só estava atrapalhando o caminho dos britânicos é visto como uma relíquia de incalculável valor, um dos poucos documentos concretos deixados pelas civilizações da Península Malaia nos séculos anteriores à chegada dos civilizados ocidentais. É considerada um dos 12 artefatos mais importantes dos museus de Singapura, e é um dos pilares de todo o esforço feito nas últimas três ou quatro décadas para resgatar a herança cultural daquele país. A perda causada pela dinamite do progresso é imensurável, já que praticamente inexistem outros achados arqueológicos que dialoguem com a inusitada laje do rio Singapura. O sábio capitão D.H. Stevenson (que, tenho certeza, cumpriu a maioria de suas tarefas na empreitada da Coroa Britânica com denodo e dedicação) hoje só é lembrado pelo seu desatinado gesto, todas as coisas boas que eventualmente tenha feito apagadas (e com justiça, lamento dizer) pelo desatino vaidoso que feriu de morte um patrimônio da humanidade. Quanto ao bangalô, não existe mais — perto do antigo local da laje ergue-se um tal Fullerton Hotel, que deve ser bem bonito e agradável, mas duvido que tenha valor como patrimônio histórico e cultural.

Haverá moral da história? Sinceramente, não sei. O fato é que a laje de Singapura virou cascalho, do mesmo modo que a Pedra de Roseta (que nos deu uma compreensão sem igual do Egito Antigo) serviu durante séculos como parte de uma parede de pedra antes de ser resgatada e se tornar, como é hoje, o objeto mais visitado do British Museum e uma das principais relíquias de toda a Humanidade. Felizmente, existem esses malucos sonhadores que se colocam à frente das medidas inevitáveis e supostamente urgentes, que insistem em dizer que nem tudo precisa ter valor prático imediato, que certos patrimônios de incalculável valor não podem ser medidos pelas moedas que colocam nos nossos cofres ou pelo espaço que ocupam em nossos ambientes. Pessoas que insistem que precisamos saber sobre nós mesmos, não apenas nos sacrificarmos mais e mais em nome da saúde de nossos balancetes.

É um consolo saber que, diante da expressão bovina de um governante que quer extinguir a Zoobotânica sem fazer a menor ideia do que vai fazer com seu acervo, há gente que está desde já tentando preservar um pouco desse tesouro. Do mesmo modo que nos dá alento saber que, diante da sandice de um capitão demasiado prático, um tenente-coronel teve a luz de sair catando, de joelhos na lama, os pedaços de pedra legível que pôde achar no meio dos escombros. A história, o conhecimento e a cultura são imprescindíveis, mesmo que passemos séculos apenas olhando para os fragmentos que restaram, sem conseguir formar um consenso sobre seu conteúdo. E, quando aparecerem com a dinamite nos dizendo que não há outro jeito, nosso dever é fazer de tudo para que não acendam o rastilho de pólvora.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.