FAQ Natusch — o que eu penso da crise que consome o PT

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
8 min readMar 13, 2016
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Começando um pequeno projeto pessoal, no qual pretendo resumir minhas impressões de momento sobre determinadas questões. Não que muita gente se importe, mas é frustrante estar seguidamente engolido por discussões onde mais se deduz ou impõe carapuças do que de fato se debate as ideias dos outros. Quem quiser saber o básico sobre o que penso do atual momento político brasileiro, aqui está. Posso fazer acréscimos ou retificações dependendo do quanto eu mudar de ideia (porque, ao contrário de muitos, não vejo nada de menor ou vergonhoso em repensar coisas) ou de como certas discussões evoluírem no futuro. Sem mais delongas, lá vai.

VOCÊ É DE ESQUERDA?
Sim, com certeza me identifico ideologicamente com a esquerda. Sou contrário ao capitalismo e até certo ponto presto tributo ao pensamento marxista, embora certamente com uma leitura crítica de boa parte (em termos políticos, a maioria) do que ele escreveu. Se você precisa de um pensador para me referenciar, digamos que me sinto bem próximo de Guy Debord, embora não sem ressalvas também. Enfim, é isso aí, sou de esquerda sim. E essa posição está bem consolidada.

VOCÊ É PETISTA?
Não. Nunca fui petista, embora tenha (como a grande maioria dos esquerdistas e, imagino eu, da população brasileira) votado em candidatos petistas muitas vezes desde a redemocratização. Com o tempo, porém, isso se tornou cada vez mais eventual (votar Dilma no segundo turno em 2014, por ex, foi um dos “confirma” menos agradáveis de toda a minha vida). Seja como for, nunca sequer cogitei filiar-me ao PT ou a qualquer outro partido, por ter ojeriza ao sistema político-partidário como um todo. Atualmente, estando consolidada o que considero uma profunda decadência ideológica do partido, me alinho com ele no máximo em algumas questões pontuais.

VOCÊ É A FAVOR DO IMPEACHMENT DE DILMA?
No momento, não. Acho que faltam elementos práticos, concretos e não meramente dedutivos para tal. Obviamente, essa impressão pode mudar, na medida em que se comprove que ela cometeu ilícito dentro das regras previstas para o impeachment. Do ponto de vista prático, de solução de crise, também sou contra. A saída dela não me causaria tristeza (ver “Qual sua avaliação do governo do PT na esfera federal?”), mas não tenho a menor confiança naqueles que desejam ocupar seu lugar. Ao contrário: tenho firme convicção de que boa parte do cenário impraticável que vivemos é criado conscientemente por essas pessoas — ficando claro, portanto, que estão pouco se lixando na prática com o tão falado “futuro do Brasil”. Trocar novos ladrões por velhos ladrões pode ser inevitável, mas não dá para chamar isso de solução. E impeachment por mau governo ou baixa confiança econômica não existe no presidencialismo brasileiro, então eu sinceramente não me comovo com esses argumentos. Mudem o sistema primeiro, antes de fazer uma gambiarra.

VOCÊ É A FAVOR OU CONTRA A CORRUPÇÃO?
Com todo respeito, essa pergunta é um tanto infantil. Ninguém é a favor da corrupção; nem mesmo entre os corruptos e corruptores a solução corrupta deve ser unanimidade. Acredito que a corrupção é sistêmica, inerente ao modelo capitalista, e é por isso que em nenhum lugar do mundo ela é, foi ou será plenamente eliminada. No caso do Brasil, ela é o meio pelo qual se exerce ou se desfruta do poder, desde sempre e em todas as esferas — que sentido faz, nesse cenário, alguém ser individualmente “contra” a corrupção? Corruptos e corruptores devem ser punidos sem choro nem vela, mas o simples revezamento de atores não elimina a corrupção, a simples condenação moral da corrupção não faz com que ela desapareça. Assim, é altamente improvável me ver um dia erguendo um cartaz “contra a corrupção”, porque para mim é um lema frágil e meio ingênuo, que mal chega a arranhar o coração do problema. Se quiserem falar de uma profunda reforma política ou da construção de novos modelos de participação democrática (já que acabar com o capitalismo, como esforço coletivo, dificilmente vai rolar), estamos aí.

VOCÊ É A FAVOR OU ANTI-LULA?
Acho que Lula fez um bom governo (talvez mesmo o melhor possível) em aspectos importantes, trazendo mudança significativa (e para melhor) para parcelas enormes da população. Além disso, boa parte da raiva contra ele é meramente classista, o ódio que se sente de quem ousou não aceitar ser pobre e sem voz a vida inteira. Ou seja, para anti-Lula eu não sirvo. Porém, e para usar uma metáfora abrangente, sinto que no fim das contas ele dançou conforme a música em pontos onde poderia (e deveria) ter mandado a banda parar de tocar, o que me impede de simpatizar com ele sem ressalvas. E detesto o ar messiânico em torno dele. Quanto às acusações que pesam sobre Lula enquanto escrevo esse texto, acho algumas ridículas (a questão do cofre onde guarda itens presidenciais foi especialmente sem sentido) e outras bem mais graves e concretas (o tríplex e especialmente o sítio são situações bastante nebulosas). Ele que responda sobre elas, desde que dentro do procedimento legal (e sim, a condução coercitiva foi uma tremenda palhaçada e algo bastante preocupante — ver “Você é a favor ou contra a Lava-Jato?”).

QUAL SUA AVALIAÇÃO DO GOVERNO DO PT NA ESFERA FEDERAL?
O governo petista, com o seu inquestionável fracasso ético e ideológico, é um sintoma dramático do problema, não o problema em si. O problema (ou ao menos o que eu enxergo ser o problema) está no jogo, e não somente naqueles que o jogam. Dito isso, acho que houve decadência tremenda com o governo de Dilma Rousseff, que conseguiu me decepcionar sinceramente. Não é culpa de Dilma propriamente, e certamente não nutro por ela ódio ou desprezo, mas acho que ela e aqueles de quem se cercou simplesmente não estavam à altura dos cargos e do momento histórico que tiveram em mãos. A deterioração das bandeiras sociais, que já vinha forte nos últimos anos Lula, acelerou-se no governo Dilma, ao ponto de se tornar difícil dizer onde, no fim das contas, ela estar no governo faz de fato diferença a partir de uma perspectiva de esquerda. O modelo econômico desenvolvimentista e calcado no consumo ruiu, como se sabia que ruiria, e ter apostado nessa fórmula foi um erro ideológico e político. E nem vou falar da questão indígena e ambiental porque daí eu não paro mais. Em resumo, ficou bem ruim e está ficando pior.

VOCÊ PARTICIPOU OU VAI PARTICIPAR DOS PROTESTOS CONTRA A CORRUPÇÃO EM 2015–16?
Não. Como jornalista, eu teria interesse profissional em cobrir essas manifestações — que são legítimas e devem ser toleradas e compreendidas dentro de um ambiente democrático, desde que elas próprias não desejem acabar com ele (caso dos abjetos pedidos por intervenção militar). Como mente pensante, elas me são desagradáveis e as vejo, acima de tudo, como uma enorme cortina de fumaça. Não são protestos contra a corrupção: são protestos contra o PT, o governo petista e a esquerda como um todo, e seria bem mais saudável se assim fossem propostos e assumidos. Detesto manifestações patrióticas, boa parte dos gritos de guerra me soam como uma exaltação da ignorância e não vejo de que modo órgãos, partidos e indivíduos contaminados pela corrupção possam participar de um esforço coletivo para eliminá-la. Entendo que muitos tenham vontade de participar de um momento importante e de uma catarse coletiva, mas auto-engano não é comigo, e eu seria o maior dos hipócritas se me juntasse a um movimento do qual discordo e no qual localizo bem mais coisas ruins do que boas. Mas quem sou eu? Se você acha bom, vai fundo.

O QUE VOCÊ ACHOU DO PEDIDO DE PRISÃO PREVENTIVA CONTRA LULA POR PARTE DO MP-SP?
Um show de comédia. Preocupante, claro, porque pessoas assim estão decidindo também sobre acusados bem menos poderosos (ver “Você é a favor ou contra a Lava-Jato?”), mas acima de tudo uma grande tragicomédia. Não dá para levar de forma alguma a sério, mesmo que eventualmente seja aceito em primeira instância (vai saber, né). Leia mais sobre minha opinião a respeito aqui.

VOCÊ É A FAVOR OU CONTRA A LAVA-JATO?
Eu obviamente sou a favor de qualquer investigação que ajude a colocar freios no assalto sistemático aos cofres públicos. Não dá para ser “contra” a Lava-Jato nesse sentido. Sou contra vários procedimentos da investigação e questiono várias decisões do juiz Sérgio Moro — entre elas, o uso lamentável e indiscriminado da prisão preventiva como modo de obter evidência testemunhal, a mania de pedir condução coercitiva antes de chamar adequadamente a depor e o cerceamento constante dos direitos de boa parte dos investigados. E não me posiciono contra tudo isso por pena dos pobres corruptos que estão caindo: é por saber que esses mesmos mecanismos são e seguirão sendo usados também contra presos bem menos poderosos, com muitíssimo menos recursos para contratação de advogados e elaboração de estratégias de defesa. Em terrível parcela, a Justiça brasileira é punitivista e elitista, adora brincar de ser severa e ignorar direitos do acusado ou condenado — e a Lava-Jato reflete e amplifica vários desses defeitos, dentro de uma lógica na qual, punindo o bandido, tudo bem deixar a lei um pouco para lá de vez em quando. Assim agindo, ela pode inclusive plantar o próprio fracasso — o que talvez vejamos no futuro, quando as decisões começarem a chegar no STF. Sem contar que a Lava-Jato é mais permeável a vazamentos e utilizações políticas do que deveria — mas isso é papo para outra ocasião.

VOCÊ É A FAVOR OU CONTRA O GOLPE?
Não serei jamais a favor de qualquer golpe de estado. Cuidado, porém, com o que se chama de “golpe”. Investigar Lula, por exemplo, não é golpe. A Lava-Jato, com seus numerosos defeitos, não é golpista. Vários veículos de mídia são antipáticos ao governo petista e surdos a qualquer demanda social, mas resumir isso a golpismo muito mais confunde do que esclarece a questão. O pedido de impeachment, do modo como vem sendo conduzido até o momento em que escrevo essas linhas, fede a golpismo barato — mas basta produzirem uma prova sólida de que Dilma, no decurso do atual mandato, envolveu-se ativamente em atividade criminosa ou de lesa-pátria e a coisa ganhará outros contornos. As manifestações não são intrinsecamente golpistas, mas as sinto contaminadas pela ânsia de um golpe. Estamos testemunhando um momento terrível, de pouquíssima tolerância e ameaça crescente a importantes salvaguardas democráticas — mas o governo também tem agido nessa direção, quando encaminha questões como a esdrúxula “lei anti-terror” ou ignora solenemente o direito de povos originários em nome de mega-empreendimentos e afins. Ou seja, e voltando ao começo: o problema é o jogo, não as peças, e o jogo não se resolve com algumas frases feitas e com a demanda por decisões do tipo sim-ou-não. Ainda mais quando elas surgem para me convencer a engolir críticas e defender não a liberdade, não o ideário de esquerda, mas um governo específico — uma sensação, e estou sendo bem sincero aqui, da qual não consigo me desvencilhar.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.