Fechar exposição é ignorância. Não menospreze a ignorância

Igor Natusch
O Esforço Diário
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4 min readSep 12, 2017

Desde ontem, tenho feito algumas manifestações no twitter sobre o fechamento da exposição “Queermuseu”, depois que uma turba ignorante orquestrada por malandros políticos fez tudo que pôde para inviabilizar a continuidade da mostra. Foi um dia cheio de mensagens curiosas e ilustrativas, tanto públicas quanto em inbox, cujo conteúdo em sua maioria dá bem para imaginar. Entre elas, essa belezinha aí, onde aprendemos que Nápoles é uma espécie de Havana italiana, uma Cuba em plena Europa, pertinho daquele antro de perdição e falta de fé chamado Vaticano e por aí vai.

Algumas situações que considero ilustrativas:

  • Uma pessoa que mencionou “pedofilia” na mostra a partir das menções a “criança viada” e que, quando recebeu minha explicação do que era Criança Viada, o Tumblr aquele, e de como era importante entender uma coisa para pegar o conceito da outra, claramente baixou a bola (uma segunda ficou menos convencida, mas ao menos parou de me xingar, o que é alguma coisa);
  • Várias (várias!) pessoas incapazes de aceitar que pão ázimo só vira hóstia depois de consagrado e que, portanto, as palavras “obscenas” não foram escritas na hóstia, e sim numa bolacha qualquer. Essa parte é interessante, porque muitas admitiam tacitamente o caráter simbólico da coisa toda (afinal, a hóstia não é de fato hóstia), mas se recusavam a aceitar que outras simbologias possam ser aplicadas sobre ela e bem, enfim;
  • Uma pessoa que simplesmente deletou tudo que tinha me dito (xingamentos e acusações de “defender pedofilia”, basicamente) quando disse que a hóstia é o corpo de Cristo e, portanto, colocar palavras como “buceta” e “cu” sobre uma quase-hóstia pode ser pouco sutil, mas não deixa de ser uma discussão válida sobre a leitura que temos do corpo humano e de todo o sagrado e profano nele envolvido. Não sei o que a pessoa pensou, pois estou bloqueado por ela desde então;
  • Algumas (não poucas) pessoas que, diante da foto que coloquei no meu tweet reproduzido ao lado (uma vrs expandida dela está aqui — pode ferir suscetibilidades, já aviso) bateram pé que a figura não é humana, mas sim o diabo ou Baco ou Pan ou seja lá o que for, logo não era zoofilia — usando a simbologia como forma de negar a outra simbologia, que é a do cidadão representado fornicando com a cabra em um cenário cheio de atos sexuais (uma boa explicação da obra está aqui);
  • Inúmeras (sério, nem dá para tentar contar) pessoas dizendo que sou homossexual e/ou comuna (rolou até um “petralha” ali no meio) porque resolvi defender a legitimidade de uma exposição artística — demonstrando sua incapacidade de ver além das próprias convicções e a necessidade doentia de ter um antagonista claro, inequívoco, representante de toda a maldade plasmada em uma ou duas palavras desprezíveis e/ou aterrorizantes.

Qual o caldo que resume isso tudo? Ignorância.

Fechar uma exposição inteira porque não gostou do conteúdo de algumas obras (ou, como foi bem mais comum, porque se chocou com a interpretação que foi feita a respeito delas) é ignorância. É algo que só será proposto por quem não nutria e jamais nutriu interesse pela exposição em si, e muito provavelmente jamais teve interesse em exposição alguma. Gente que não deve pisar em museus há anos, que talvez jamais tenha pisado em um museu na vida a não ser nas excursões da escola, e olhe lá. Reagir em frenesi destrutivo diante de uma obra que perturba é ignorância, e achar que o retrato de uma situação é automaticamente endosso ou incentivo a essa mesma situação é ser obtuso, e ignorante também.

A gritaria que encerrou, ao menos por enquanto, a mostra Queermuseu é de gente que não gosta de arte, que não se interessa minimamente pelo assunto, que no máximo aprecia a estética sem ir além do bonito ou feio — ou seja, que fica na superfície. Gente que não lê nem a charge do jornal, que não quer nem saber de arte, que acha tudo estranho e alienígena. Gente ignorante, no sentido estrito do termo: pessoas que se posicionam com ênfase (e a ênfase é tudo que elas têm) a respeito de algo que ignoram. E não digo isso para humilhar essas pessoas, nem para me colocar como o bonzão não-ignorante diante delas (sou ignorante em tanta coisa!): o que quero é deixar bem claro que o combustível dessa chama de revolta irracional é o desconhecimento, e talvez mais ainda, a necessidade quase primal de desconhecer. Porque esse desconhecimento, queiramos ou não, é alicerce para muita, muita gente. Discutir sexualidade e discutir religião são duas coisas que causam pavor — e por isso o Criança Viada vira “pedofilia”, por isso não se enxerga diferença entre desenhar zoofilia e fazer propaganda dela, por isso uns termos chulos (mas não blasfemos) escritos numas bolachas motivam uma defesa da religião como se Jesus em pessoa estivesse sendo apedrejado na nossa frente. É uma necessidade absurda de expressão, a partir de um medo absurdo de qualquer coisa que desestabilize, que crie terreno para a discussão. Qualquer uma.

A gente não tem que ter ódio dessas pessoas. Dá para detestar, no máximo, os malandros que usaram a manada em benefício próprio. Mas a gente tem que estar ciente que elas existem. E que são uma força muito, muito poderosa, justamente porque a explosão e o exagero é tudo o que elas têm.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.