Jael, nós gostamos de você

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
5 min readMar 20, 2018
Foto: Lucas Uebel / Grêmio FBPA

Eu gosto do Jael. De verdade. Mas vou começar falando mal dele.

Ele é fraco tecnicamente. Todos sabemos; provavelmente ele próprio sabe disso muito bem. Não digo fraco no sentido de ser um fracassado, alguém que não serve para a profissão, completamente incapaz de jogar futebol — acho, inclusive, que ele pode jogar com destaque, no mínimo, razoável em inúmeros clubes do futebol brasileiro. Mas está abaixo, tecnicamente falando, das exigências do Grêmio. Consideravelmente abaixo, eu diria. O Tricolor é um clube de ponta do futebol brasileiro, uma equipe com grandeza mais que suficiente para brigar por títulos em todas as competições que disputa, e Jael simplesmente não reúne as aptidões necessárias para jogar futebol nesse nível. Não digo isso com maldade ou prazer mórbido: eu gosto do Jael, como acabei de dizer, e espero de coração que ele não se ofenda, caso um dia venha a ler isso aqui. Mas alguns jornalistas nasceram para ganhar o Pulitzer, outros (eu, por exemplo) não. Alguns atletas nasceram para jogar na elite do futebol, outros não. Jael não nasceu. E está tudo bem.

Mas, e aí está o que há de mágico em um personagem e uma figura humana como Jael: por uma série de acasos do Destino, ele está exatamente lá, na elite do futebol. E contribuindo muito para o excelente momento do Grêmio, aliás. Fez assistência em final de Libertadores. Foi a campo no Mundial de Clubes, contra o poderosíssimo Real Madrid. Acaba de jogar o Grenal e fazer um golaço, cobrando falta com uma elegância que deixaria Zico com um sorriso no rosto. E nem falo na assistência de ombro, recurso ao mesmo tempo simplório e brilhante que colocou Arthur na cara do gol para o 3 a 0 definitivo. Jael é, hoje, titular do Grêmio, atual campeão da América. E está fazendo por merecer. Não é exagero algum dizer que Jael é ídolo da torcida gremista.

Vale lembrar: há menos de um mês, ele não tinha feito um gol sequer pelo Grêmio.

O carisma de Jael não vem de sua técnica, mas de sua entrega. Há algum tempo, eu brincava dizendo que me sentia representado por Jael em campo: afinal, ele não fazia nada em campo que eu mesmo não faria! Uma brincadeira que soa cruel por um lado, mas que também traz um ângulo mais suave, elogioso inclusive. E é justamente esse aspecto que desejo ressaltar.

Não é por uma simples leitura obtusa do esporte que os torcedores de futebol gostam de times que se entregam, e não é por serem simplórios que pedem mais raça das equipes que estão perdendo. Trata-se, em verdade, de um elemento de identificação: nem todo torcedor joga futebol de qualidade, mas todo ele precisa enfrentar desafios no decorrer da vida. O torcedor pega ônibus lotado, vive com pouco dinheiro, tem uma vida cheia de correria e obrigações. Por vezes sente-se humilhado, não reconhecido em seus esforços, tendo que engolir em seco as críticas do patrão. Encara de frente os boletos atrasados, o parente doente, a insegurança e as precariedades de sua vizinhança, as desilusões do coração. Está, em suma, sempre atrás do placar. Mas segue vestindo o uniforme, todos os dias, respirando fundo para não deixar a peteca cair.

O torcedor adora a glória, mas não se identifica com ela. O sucesso, a fortuna, a badalação: essas coisas, para a ampla maioria dos apreciadores do futebol, são distantes. Ele não as conhece; delas, entende muito pouco. Ele entende de raça. De encarar o momento desfavorável e, teimosamente, seguir em frente. Brigar o tempo todo e, de vez em quando, de tanto martelar, marcar um golzinho a seu favor na goleada que quase todos nós levamos da vida. O torcedor pede raça não porque quer a vitória a qualquer custo — talvez ele mesmo ache isso, mas me permitam dizer que está enganado. Não: ele pede raça porque quer ver a si mesmo dentro do campo. Se não podem me dar a ilusão da glória, pelo menos mostrem que também estão lutando, seus palermas. Porque de luta o torcedor entende, com a luta ele está acostumado, e o mérito de quem luta ele sabe reconhecer.

Jael luta. É um brigador, que enfrenta sem medo até as próprias carências técnicas. Corre feito um touro atrás da bola, apenas para cruzar rasteiro e de qualquer jeito nos pés do zagueiro mais próximo. Erra de um jeito que, vindo de alguém mais talentoso, jamais seria perdoado pela torcida. Mas a torcida gremista perdoa Jael. Quando Jael finalmente fez seu primeiro gol com a camisa gremista — de pênalti, contra o Novo Hamburgo, pelo Gauchão — a Arena explodiu em um alegre frenesi. Eu mesmo: estava no litoral, de férias, ouvindo apenas pelo rádio, e comemorei muito o gol de Jael, como se fosse algo muito especial. Porque era especial, mesmo. Era um gol de Jael. Era um dos nossos que tinha acabado de fazer gol.

Porque é isso, amigo leitor e amiga leitora. Jael é um dos nossos. Está fazendo o que todos nós faríamos, ou gostamos de pensar que faríamos, diante de uma chance na alta roda: dando o seu melhor. Se esforçando, e muito, para ser ainda mais do que é capaz de ser. Ele erra, e vai correndo como um touro atrás da bola, pronto para errar de novo. E erra de novo, e vai novamente. Tanto erra, que acaba acertando. E tira de cada acerto o ânimo para tentar mais cinco, dez, mil vezes se precisar. Para Jael, a frase feita (e por vezes um tanto maldosa) que fala do jogador que joga por um prato de comida tem uma verdade especial e até mesmo tocante: o Cruel é, de fato, um esfomeado dentro de campo. Para ele, cada instante é uma batalha. Não é assim, para todos nós?

Eu gosto de Jael. Muito mesmo. Gosto porque me enxergo nele, gosto porque cada vitória pessoal dele parece muito mais minha do que a dos demais. Quando Jael fez seu primeiro gol de pênalti, depois de uns 30 jogos de fracasso, o gol dele foi mais nosso do que quase todos que Luan, cem vezes mais jogador que Jael (e outro jogador de quem gosto muito, mas por outros motivos), fez com a camisa do Grêmio. Quando marcou de falta no domingo, todos nós nos sentimos fazendo um golaço em um Grenal, junto com ele.

Jael não tem condições de jogar pelo Grêmio? Tecnicamente, não mesmo. Mas, ainda assim, que fique no Grêmio muito tempo ainda, bufando e suando em campo com entrega absoluta, fazendo o seu melhor. Ninguém pede dele mais do que isso. É sempre bom ter um de nós dentro de campo, sabe como é.

--

--

Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.