O legalismo é o escudo da infâmia

Igor Natusch
O Esforço Diário
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5 min readJan 18, 2015
Foto: Bay Ismoyo/AFP

Não está em questão a eficácia do processo legal que levou o brasileiro Marco Archer a ser fuzilado na Indonésia por ter cometido tráfico internacional de drogas. Não está em questão nossa empatia ou asco por ele, nem se ele era um playboy que vivia de forma luxuosa graças ao dinheiro que fazia vendendo drogas. Está em questão se é adequado o estado matar pessoas sob sua custódia, seja por qual motivo for. E se é adequado fazê-lo em nome da dita luta contra as drogas, dentro de uma lógica de endurecimento que só fracassa, mais e mais, pelo mundo afora.

O proibicionismo é, penso eu, inaceitável. Considero inclusive que o usuário de drogas tem direito a adquirir seu produto sem precisar obtê-lo forçosamente de forma ilegal, já que a forma legal inexiste. Entendo bem (até demais, talvez) o drama de uma família que sofre com alguém viciado, mas penso que essa situação terrível não deve ser contida preventivamente pelo estado — ou seja, que não cabe ao poder público proibir drogas para eliminar o risco de pessoas sem controle destruírem sua própria vida e a de seus próximos. Penso que a proibição reforçou o tráfico internacional de drogas, destruindo muito mais famílias que o simples consumo desregrado de drogas seria capaz. E penso que as leis proibicionistas, pedindo punição cada vez mais severa a traficantes e até mesmo usuários, já fracassaram de tal maneira que é até meio ridículo considerarmos que punindo de forma mais dura ou por mais tempo vamos conseguir conter o problema. Pessoas consomem e seguirão consumindo drogas — desde cocaína até álcool, desde maconha até cigarros de palha. Pessoas gostam de alterar a consciência e de obter prazer físico imediato. É assim que somos, e proibir não adianta nada — pelo contrário, só piora tudo. Exemplos não nos faltam.

Da mesma forma, sou visceralmente contra a pena de morte. É inútil (não diminui em nada os crimes que busca conter e jamais foi capaz disso, em lugar algum do mundo), é dispendiosa (o processo mais caro da história dos EUA, por ex, foi o de um serial killer tentando fugir da cadeira elétrica), desrespeita direitos fundamentais do ser humano. É imoral, sujeita a erros irreversíveis, vulnerável à corrupção e à perseguição política. Sujeita a subjetividades. É brutal e bárbara. Nega tudo oque evoluímos enquanto civilização nos últimos séculos. Que se deseje algo tão ineficaz e desumano é algo que se explica apenas a partir da sede de vingança — uma vingança que se traveste de Justiça, que vê na aniquilação do outro a reafirmação de si próprio. Cogitá-la como punição mesmo ao mais abjeto dos crimes é, na minha visão, desistir de tudo que tornou a civilização possível. É, portanto, completamente inaceitável.

Para mim, a lei da Indonésia une o pior de dois mundos: não apenas pune severamente o tráfico de drogas — algo que, na minha visão de mundo, deveria ser regulamentado pelo estado e, uma vez feito de forma ilegal, torna-se-ia um caso de contrabando — como aplica a ele a pena de morte, algo absurdo em qualquer circunstância. E é disso que estamos falando. É nesse terreno que é possível a concordância ou a divergência. Sem afetos ou raivas profundas, sem meias-verdades ou sentimentalismos. Com fatos e ideias. Argumentos. É assim que se pode chegar a algum lugar: mesmo que nossas opiniões não mudem a lei indonésia nem ressuscitem o brasileiro morto por fuzilamento, será nossa a decisão de ir nessa direção ou tentar outra coisa. Uma conclusão a esse respeito é que deve ser o tema de nossos esforços.

De forma que as simplificações grosseiras, nesse caso, são especialmente detestáveis. “Ele sabia o que esperava por ele”, por exemplo, é um recurso ao legalismo como elemento para bloquear a discussão que expliquei acima. Coisas como “é bandido, não vai fazer falta” são ainda piores. É sempre curioso esse apelo ao ‘criminoso’, esse rótulo fantástico que sempre incide sobre os outros e jamais sobre nós ou sobre os nossos. No passado, foi-se bandido por coisas que hoje são legais; hoje, podemos ser bandidos por algo que nossos avós veriam como natural. Evocar a condição de criminoso de alguém para impedir que se discuta a validade de sua punição é um argumento pobre, simplório. E insinuar que os indignados com essa morte são defensores de bandidos ou não dedicam a mesma atenção aos jovens negros que vão para a cadeia por portarem buchas de maconha é, além de falso, um argumento que fede a covardia intelectual. Não somos nós, os que gritamos contra essa execução, o centro do assunto. O tema central é se devemos seguir impedindo pessoas de comprarem drogas e, como qualquer ser humano adulto, assumirem a responsabilidade por seus atos. É se o gerenciamento de drogas por parte do poder público e/ou por empresas privadas legalizadas e pagadoras de impostos pode ser um modelo melhor do que esse, onde o tráfico internacional movimenta mais dinheiro que países inteiros e espalha criminalidade pelos países que atinge, tudo com o monopólio de seu produto garantido pela ausência de regulamentação. E também é nosso tema determinar se qualquer crime é eficiente e adequadamente punido com a morte, e se o que é inaceitável quando feito individualmente pode, em qualquer circunstância, ser aceito quando feito em nome do coletivo.

Causa-me repugnância a defesa cega da lei como algo inquestionável, que se aplica e pronto. Leis são e devem ser confrontadas o tempo todo. Apartheid era a lei da África do Sul. Matar gays é a lei na Arábia Saudita. Obrigar uma mulher estuprada a casar com seu algoz é lei em alguns países africanos. Espaços específicos para negros eram (e ainda são) lei em muitos lugares. É a nossa capacidade de questionar essas leis — desobedecendo-as inclusive, quando julgamos ser o caso — que nos tirou de Hamurábi e nos trouxe até aqui: um mundo longe do ideal, mas no qual ainda temos algum tipo de esperança. O legalismo cego e intransigente é o escudo da infâmia.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.