O terror quer destruir nossa humanidade. E o nosso ódio é a arma que desejam

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
4 min readNov 14, 2015
Foto: Christophe Ena / AP / The Atlantic. O uso dessa imagem não tem interesse comercial.

Diante de uma situação histórica (pelos piores motivos possíveis) como a que se abateu sobre Paris na sexta-feira, é natural que as pessoas reajam, de forma individual ou coletiva, tentando se conciliar com as incertezas de um mundo que parece cada vez mais hostil. É um cenário que favorece quem traz respostas unidimensionais, simples, aparentemente capazes de resolver uma situação grave de escala mundial com algumas poucas palavras de ordem. É um choque de civilizações, dizem alguns; o mundo islâmico quer destruir nosso modo de vida, esbravejam outros; é preciso impor a democracia sobre o mundo árabe e tomar cuidado com os refugiados que chegam, quem sabe escondendo terroristas, argumentam mais alguns.

Diante de tantos esforços de compreensão, naturais em um momento tão terrível e um cenário tão inquietante, inevitável que eu também busque algumas reflexões. E as concentro aqui, de forma um tanto desorganizada, sem nenhuma pretensão acadêmica ou de autoridade sobre o tema.

O crescente discurso do “choque de civilizações” é não apenas de um primarismo perigoso e assustador, como diretamente apartado da realidade. Ele enxerga dois mundos — o muçulmano, atrasado e raivoso, e o ocidental, modelo civilizatório que o primeiro deseja destruir — e atribui a esse suposto conflito o combustível para ataques terroristas ao redor do mundo. Observem, porém, essa exaustiva lista construída na Wikipedia com todos (ou quase todos) os incidentes terroristas deste ano de 2015. Uma breve passada de olhos revela que a esmagadora maioria dos atos são contra alvos regionais, associados muitas vezes a dinâmicas políticas estritamente locais. Como isso encaixa na ideia de uma guerra contra o mundo ocidental? Ainda que o ódio a países estrangeiros, seja por uma dita postura intervencionista ou qualquer outra coisa, ajude a explicar vários acontecimentos individualizados, nos falta elementos para associar a realidade terrorista como uma simples reação de um bloco contra o outro. Essa resposta é pobre e não explica quase nada — ou seja, não é uma resposta.

O que une esses esforços de terror é uma tentativa de impor sua vontade acima das estruturas sociais e dos direitos fundamentais. Um movimento dos que acham que o fim está acima de tudo, justificando os meios acima de qualquer salvaguarda coletiva. O nós-contra-eles não é Ocidente contra muçulmanos: é o Estado de Direito contra os que querem destroçá-lo. E essa batalha tem vários fronts. Fanáticos de todos os tipos querem um cenário (local ou global) onde possam imperar. Resumir isso a um espaço geográfico ou a determinada manifestação religiosa é uma miopia, além de inútil, perigosa. E seu risco está justamente em poder encorajar os extremistas do lado de cá da trincheira, os que querem o triunfo das próprias intolerâncias — e que não hesitarão em direcionar nosso medo a favor de seus interesses.

Não há, entre os recentes ataques em países europeus (ou em nações ditas ocidentais, como a Austrália), um único responsável que seja um estrangeiro ilegal no país atingido. Ao contrário: são pessoas com passaporte local, que transitavam livremente. Achar que é preciso agir contra refugiados para diminuir o risco terrorista é não apenas insensível, mas uma manifestação preconceituosa que não traz nenhuma ligação com fatos concretos e conhecidos. E quando ela vem de fanáticos religiosos aqui do Brasil, por ex, se torna ainda mais odiosa. Estabelecer um fosso entre sua área de abrangência e o resto do mundo é justamente uma das armas do terror — e qualquer ação que incentive medo ou ódio contra uma coletividade, tratando muçulmanos como “perigosos” ou o terrorismo como uma característica cultural, está colaborando nesse jogo ao invés de enfrentá-lo de fato. O ódio contra o ódio nunca será uma boa guerra.

O terrorismo que surge em países de maioria islâmica quer destroçar nossas estruturas civilizatórias. Mas não está sozinho nisso. Não há mais ou menos horror. Há o horror, causado pela fragilidade institucional que vai dando força a fanáticos. Um cenário que existe em vários lugares, em diferentes contextos, e que a partir do ódio e da ignorância vai engolindo todos nós. As vítimas em Paris não são diferentes das famílias que formam a onda de refugiados na Europa, nem opostas aos que morreram em ataques no Líbano e Iraque, para citar os mais recentes. Nem para mais, nem para menos. Esses mortos são todos irmãos, vítimas do mesmo inimigo comum. Separá-las é parte do problema.

Quando ocorre o horror e você começa a buscar alguém para odiar, quando ergue um muro contra os odiáveis ou defende que a resposta brutal esteja acima de valores universais, vencem aqueles que vivem do ódio. E isso não apenas contra os horrores terroristas, mas em todas as situações onde o medo serve como ferramenta de poder e dominação. Se meu temor ao ódio provoca ódio, se meu medo da violência pede uma resposta violenta, se um ambiente tomado por fanáticos desperta o fanatismo em mim — eis cenários onde a civilização e a fraternidade universal são colocadas em risco, em nome dos interesses vis daqueles que sempre desprezaram tudo isso. O horror quer destruir muitas coisas, mas acima de tudo a nossa humanidade. É preciso estar alerta para não virar soldado daqueles que queremos derrotar.

--

--

Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.