Pensamentos desconexos sobre Donald Trump e o fim do mundo

Igor Natusch
O Esforço Diário
Published in
4 min readNov 9, 2016
Foto: Gage Skidmore

Escrever é um bom modo de ordenar ideias e neutralizar algumas angústias. Então organizo aqui algumas reflexões a respeito das coisas todas do mundo, para ver se acalmo a minha própria angústia e se, junto daqueles que também sentem uma angústia irmã da minha, conseguimos achar algum conforto em meio à escuridão.

Bueno. Eu costumo dizer que sou uma testemunha ocular do fim do mundo. É um conceito que me ocorreu subitamente, em circunstâncias que não mais recordo, e que me segue há pelo menos uma década. Uso como descrição minha em várias redes sociais. É sonoro, tem força — modéstia à parte, é uma frase bem costurada em si mesma. Testemunha ocular do fim do mundo.

E nunca foi uma metáfora.

A casa dessa civilização caiu. E a culpa não é da maldade ou, dizendo de outro modo, da burrice das pessoas. As pessoas não são burras — pelo contrário, a inteligência emocional delas é geralmente fantástica, ainda que intuitiva. Também não são intrinsecamente más: a maldade é uma estratégia, muitas vezes a mais simples e eficiente, de sobrevivência. Não acho que o povo dos EUA emburreceu de Barack Obama para Donald Trump, assim como não acho que o Brasil emburreceu nos últimos 15 anos nem que a Europa viva uma onda sem precedentes de maldade ou burrice. O que não resta dúvida, creio eu, é que o mundo ficou bem mais amargo e rancoroso nesse período. E essa distinção simples me parece fundamental para tirar algo dessa angústia que nos esmaga.

A insatisfação é sempre sintoma. Acabou a farsa do mundo em paz, vestido e alimentado pelo capitalismo global e pelo grande diálogo entre as nações. Acabou a ilusão em um sistema onde a ampla maioria dos eleitos se distancia dos que o elegem, atuando em nome das grandes concentrações de dinheiro. O véu de democracia que cobre nosso sistema plutocrático global, que já era fino há tempos, desmanchou-se de vez. Falhou a metáfora do bolo que cresce e dele sobra um pouco mais para cada um. Abalou-se a ideia de que a nova era digital mudaria tudo, nos faria mais livres como num passe de mágica. Rachou a ideia de que as esquerdas são uma voz automática e infalível dos anseios das pessoas, de que são capazes de administrar o monstro de dentro de suas entranhas e transformá-lo em algo mais belo e humano a longo prazo. Acabou a ilusão de estarmos no auge; o mundo gira, a nave parece sem controle, o chão está cada vez mais próximo.

Alguns desses discursos, ainda que frágeis, serão mantidos por mais tempo. Vários seguem fortes em alguns lugares, talvez menos convincentes em outros. A verdade é que estão mortos ou feridos de morte. O sistema faliu, suas contradições são pesadas demais, visíveis e desastrosas além do suportável, e quem detém o poder não pode, não quer ou não sabe como agir a respeito. O sentimento coletivo já entendeu tudo isso, mesmo que de forma inarticulada, e reage assustado (e muitas vezes raivoso) em cada lugar, dentro das particularidades de cada situação local. Os eventos, como a eleição de Donald Trump nos EUA, são sintomas desse desencanto maior, mais profundo e bem mais terrível.

Mais que a máscara do sistema sólido, tolerante e quase perfeito dos EUA, cai a nossa própria. O que nos move hoje é medo, que vira ódio e ressentimento com muita facilidade, e do qual nenhum de nós está isento — afinal, é o extrato do nosso tempo. Por medo vamos às urnas, aqui e nos EUA. Por medo queremos respostas rápidas para a violência, a insegurança econômica, a falta de perspectivas de trabalho, a falta de perspectivas em tudo. Por medo corremos para as redes sociais, os que temos e podemos ter redes sociais, num esforço de dividir com alguém as nossas perplexidades. Estamos consumidos por esse medo difuso, que surge quando se vê algo ruir e que se reforça na medida em que ninguém sabe que tipo de edifício vai se erguer em seu lugar. Não há Novo Mundo à vista, pelo menos não de forma suficientemente clara que seja capaz de calar nossas incertezas. Alguns reagem escrevendo textos enormes sobre a conjuntura global; outros reagem traindo pessoas próximas, querendo bandidos mortos ou votando em Donald Trump.

Qual a solução?

Não há solução. Pelo menos não uma solução em formato de receita de bolo ou manual de instruções, um caminho que se possa seguir e fatalmente nos levará a algo melhor. Estamos todos perplexos, feridos. Com medo. Em todos os campos ideológicos. Mesmo os que triunfam hoje, no fundo tremem de medo diante do mundo que está ruindo. Ainda vai demorar para entendermos com clareza o que dá para fazer. E não dá para ignorar a possibilidade de que, quando finalmente consigamos enxergar a alternativa, ela já surja tarde demais.

Ainda assim, é preciso tentar. E isso passa pelo esforço do dia a dia, pela reafirmação de princípios inarredáveis. Diante da exaltação do que julgamos intolerável, não temos — nunca tivemos, e agora temos menos ainda — o direito de calar. A voz da discordância precisa existir. E nada é mais divergente, mais necessariamente divergente e até mesmo revolucionário do que se recusar a reproduzir o medo que emana de todos os lados e já achou abrigo dentro de nós. Uma luta difícil, mas urgente. E não se trata de salvar o mundo, mas antes de estar em boa posição para reconstruí-lo quando finalmente vier ao chão.

Porque, em certo sentido, a introdução ao fim do mundo chegou ao fim. Agora é que de fato começa o espetáculo.

--

--

Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.