Quatro gremistas e a quinta-feira pós-ressurreição

Igor Natusch
O Esforço Diário
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8 min readNov 24, 2016

Um humilde e saudoso tributo aos dias de Impedimento

Foto: Lucas Uebel / Grêmio FBPA

“Bem que eu devia mandar um whats para aquele idiota”, pensa o Gremista Pessimista, sentado na mais dura e desconfortável cadeira de seu escritório, uma calculadora na mão, o bloco de anotações caído ao colo. Foram amigos durante muito tempo, embora a relação tenha sido sempre cheia de rusgas. O estado de espírito do Delirante era irritante, deixava o Pessimista mau-humorado, às vezes com azia. Com a acidez incisiva típica dos que há muito sabem que a vida é uma trilha de decepções, o Gremista Pessimista via-se o tempo todo forçado a colocar seu jovem amigo Delirante nos eixos, quebrando sua euforia a cada vitória ilusória, a cada esperança tola e inadequada. Isso, é claro, provocava grandes discussões entre eles — ao ponto em que uma frustração pequena, uma desclassificação relativamente desimportante num Gauchão foi suficiente para que rompessem relações.

Muitos meses haviam se passado desde então.

Mas as coisas estavam mudando — e mesmo ele, o empedernido e ressabiado Pessimista de todas as horas, sabia que não podia negar essa verdade. O Grêmio estava vencendo com alguma frequência — e, o mais importante, não se acorvadava jogando partidas decisivas nem se comportava como visitante cortês fora de casa. Avançava com méritos, não com ilusões. Estava na final, agora. E o mais aterrador: dava pinta, real, de que poderia mesmo vencer. Para o Gremista Pessimista, isso era desconcertante. Mas um homem forjado nas dores da tragédia precisa ter a clareza de entender quando o vento mudou de direção, pensava ele com ele mesmo, mordiscando um amendoim. Não é estar errado, ponderava: é ser fiel ao próprio realismo. E seu velho amigo provavelmente estava exultante. Que mal faria poder dizer a ele, pela primeira vez, que agora estavam juntos na mesma convicção?

Ao mesmo tempo, hesitava. Estivera sempre certo! As coisas nunca tinham saído de seu controle! Além do mais, deixar o otimismo tomar conta poderia ser perigoso. Frustrante. E se o imponderável acontece? E se a decepção está apenas sendo insidiosa uma vez mais, dissimulando suas más intenções com uma aparência agradável, usando ardis para enganá-lo? Era risco demais. Não seria melhor manter alta a fortaleza, esgotar a caixa das vacinas, girar em alerta máximo as engrenagens da precaução?

Hesitava. Pensava e pensava, enquanto a manhã surgia pelas frestas da janela.

Por fim, agarrou o celular.

* * *

Não é de hoje que a obra enigmática do pintor austríaco Ernst Schicklgrüber deixa desconcertados críticos no mundo inteiro. Alvo de uma única e pouco divulgada exposição na Munique pré-Primeira Guerra, a efêmera trajetória de Schicklgrüber ganhou alguma notoriedade em anos subsequentes, em especial por sua capacidade de pintar a derrota humana em um estilo expressionista radical. Sua obra mais impactante, uma tela perturbadora chamada “O Quadro da Dor”, ainda é tão misteriosa quanto angustiante. Nela, uma figura humana surge de costas, usando uniforme em tons azuis e pretos, contemplando a desolação de um exército que parece esvaziado de toda a esperança.

O original dessa pintura parecia eternamente perdido, talvez destruída durante a tomada de Berlin na Segunda Guerra. Mas um pesquisador alemão chamado Uwe Pfad balançou o mundo da arte há algumas semanas, garantindo ter reencontrado essa e outras telas do genial austríaco. Elas estariam escondidas há quase um século em um porão da capital alemã, milagrosamente protegidas do mofo e da umidade — e não apenas “O Quadro da Dor” está entre as telas reencontradas, mas também algumas pinturas inéditas, totalmente desconhecidas do mundo artístico. Uma delas, em especial, surpreende pelo tom quase otimista que dela emana, totalmente diferente do legado conhecido de Schicklgrüber — ao ponto de reforçar acusações de que tudo se trata de uma grosseira falsificação. Assinada simplesmente “Retorno”, ela mostra os mesmos soldados de azul e preto da obra-prima do austríaco, mas em um estado de espírito muito mais efusivo — talvez comemorando um triunfo, talvez envolvidos em algum tipo de banquete ou festim. Os tons cinzas típicos são substituídos por uma explosão de cores, ainda que seja possível identificar as pinceladas fortes típicas do pulso nervoso do austríaco.

Será “Retorno” uma introdução, até então desconhecida, para o trágico “Quadro da Dor”? Será uma obra posterior, um alívio artístico que se sucede à angústia da obra mais dolorosa do expressionista austríaco? Ou será, como suspeitam alguns, uma fraude forjada em nome de lucro financeiro, tentando arrancar dinheiro de colecionadores a partir da aura de mistério que envolve Schicklgrüber? Críticos do mundo todo se debatem no esforço para responder essa questão — apenas mais uma das muitas que constituem o mistério dessa obra impactante e singular.

* * *

Está acontecendo, pensava o Gremista Delirante. E esse pensamento o inundava e transbordava, o deixava sem fala, enchia sua alma de inebriantes sensações.

Tinham se beijado na noite passada. Depois de anos de flerte inconsistente, de olhares que se mantinham à distância, tímidas trocas de bom dia e boa tarde, conversas puxadas nas redes sociais que nunca iam além de quatro ou cinco mensagens. Depois de festas fracassadas onde, depois de muita bebida e hesitação, o Delirante voltava para casa chutando latas de lixo na madrugada, a imagem dela com outro homem queimando como ferro em brasa em suas retinas. Depois de muitas vezes achar que era questão de tempo, que estava tudo encaminhado, e em seguida engolir a decepção amarga que, sempre soube, era culpa exclusivamente sua — dele mesmo, o otimista que não dava o último passo, não chamava para aquela cerveja, não pegava a moça da blusa de alcinha pela mão e dizia vem, vamos bailar.

Tinham se beijado. Nada além, ao menos por enquanto: um beijo doce, até certo ponto carinhoso, quase gentil ainda que cheio de calor. Algo tinha acontecido: estavam no mesmo bar, quase por coincidência, assistindo o primeiro jogo da final da Copa do Brasil. Tinham se dado oi, sentado em mesas um pouco distantes, mas em um ângulo no qual ele podia vê-la quando todos se erguiam, durante os lances de ataque. Algo nele disse que talvez fosse aquela a noite perfeita, a chance de tirar aquele assunto e aquele bem-querer nunca resolvido do caminho, de uma vez por todas — mas foi um fiapo de pensar, algo breve e indistinto, logo afogado em goles de chopp e num gol inoportuno do Atlético-MG. Seu otimismo não estava morto, mas reconhecia que andava mais ressabiado que de costume, mesmo com a ótima campanha — reflexo, tinha certeza, daquele Pessimista desgraçado com o qual tinha brigado, mas cujo fantasma continuava a seu redor. Só o que faltava, pensou. Não ia dar. De novo. E a moça do outro lado da sala, próxima e inalcançável, usando a blusa azul de alcinha que nela caía tão bem.

Num impulso, mesmo com o jogo tenso, o Delirante foi ao banheiro. Demorou-se lavando as mãos, como que para ouvir de longe os lamentos de um iminente gol de empate atleticano. Avançou para fora do lavabo com passos pouco firmes, parte pelos chopps ingeridos, parte por uma difusa sensação de desconsolo. E então, repentina como repentinos são os acontecimentos que redirecionam uma vida, lá estava a moça de pé diante dele, na fila para pagar a conta. Trocaram olhares em um átimo de instante — um olhar que era um livro inteiro, que era toda a obra de Machado de Assis e de Clarice Lispector somadas, que era toda a literatura ocidental e oriental condensadas em uma fagulha, um mergulho, uma comunicação além das palavras. Um olhar que tudo dizia, fazia tudo entrar em acordo, derrubava implacável a mais incansável das retrancas. E quando desviou o olhar, em um esforço tolo para fugir uma vez mais do inescapável, viu o Gremista Delirante que Pedro Geromel corria pela direita, impossível como todas as coisas mágicas, empolgante como toda a alegria que surge em meio ao caos.

Gritaram gol juntos. E no instante seguinte se beijaram, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se seguidamente se beijassem desde o começo dos tempos. De certo modo, era isso mesmo.

Está acontecendo, pensava o Gremista Delirante. Não tinha conseguido dormir, tamanha a adrenalina. Antes de se despedirem, tinham combinado uma peça de teatro no fim de semana, haviam acertado que veriam juntos a segunda partida — na esplanada da Arena, já que nenhum dos dois tinha conseguido ingresso para a decisão. E ele sentia que aconteceria mesmo, que agora era para valer, que nenhum dançarino experiente e nenhum balcão atraente de boteco se colocaria em seu caminho desta vez. E sorria.

O celular deu sinal. Sobressaltado, pulou sobre o aparelho como quem tenta agarrar um cãozinho que foge. Não era ela, porém. Reconheceu imediatamente a foto de Tavarelli no perfil: era o Pessimista, com suas tradicionais poucas palavras. Dizendo, simplesmente:

“Acho que vai dar.”

* * *

O despertador a acordou muito antes do que ela gostaria. Esfregou os olhos com uma pressa cuidadosa, como se estivessem cheios de areia da praia. Não que estivesse de ressaca, mas havia bebido um pouco além da conta, era cedo, e ainda era apenas quinta-feira. Além disso, o pescoço doía, no que parecia ser um início de torcicolo. Ainda assim, a lembrança da noite passada era agradável, e foi mais do que suficiente para fazê-la sorrir.

Grêmio. O Grêmio voltou. E ainda tinha surgido aquele cara, sabe lá Deus de onde, e tudo tinha finalmente dado certo.

Sempre tivera sensações dúbias em relação a ele. Tinham pouco contato, embora se conhecessem há muito tempo. Uns quinze anos talvez, deu-se conta com um pequeno susto. Quinze fuckin’ anos, pelo amor de Deus. Sentia-se atraída por ele, sentia que poderia acontecer algo bom entre eles se houvesse a chance, e sentia que ele gostava dela também — mas o otimismo nunca se transformava em ação, ela mesma também hesitava às vezes, e a verdade é que tudo tinha sempre sido desencontro nessa confusa jornada. Nunca permitiu que esse assunto não resolvido atrapalhasse o seu viver, é claro, mas às vezes chegava quase a sofrer com a situação, sentindo de tempos em tempos o peso estranho de um pode-ser que nunca se transformava em um agora-vai.

Mas agora vai, pensou ela consigo mesma. E o pensamento a deixava não apenas feliz, mas tranquila também. Não havia expectativa, ansiedade, incerteza — ou melhor dizendo, todas essas coisas estavam lá, mas eram no fundo pouco relevantes. Tudo daria certo, porque era o que tinha que ser. Talvez já devesse ter sido há tempos, pensou por um instante. Mas logo mudou de ideia: na verdade, estava sendo no momento exato. Algumas coisas precisam amadurecer, no fim das contas — e quem sabe não era o caso dela também?

Tomou um longo banho, vestiu-se com cuidado, usou seus melhores truques de maquiagem. Não era muito chegada em caprichar no visual; usava a blusa de alcinha no dia a dia, a chuteira e o calção no futebol semanal com as amigas, e para ela costumava ser mais do que suficiente. Mas aquela manhã era diferente, e queria sentir-se bonita, queria olhar no espelho e encher-se de autoestima e confiança em si mesma. Não para agradar o Gremista Delirante, não para os colegas de escritório, nem para o mundo lá fora: para ela mesma, e para mais ninguém. O Grêmio voltou, o futuro era logo adiante, e aquela quinta-feira tinha — para ela, e talvez para toda uma nação — um gosto indiscutível de primeiro dia.

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Igor Natusch
O Esforço Diário

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.