Deve existir alguma maneira de explicar tudo isso

Nícolas Barbieri
O EXPRESSO
Published in
5 min readJun 30, 2016

Passei a vida a tentar juntar coisas que entrassem em harmonia com outras. Sou estudante de música, estou no meu último ano de faculdade — sim, eu faço faculdade de regência e sei que há um preconceito, mesmo que positivo, entre aqueles que resolvem entrar neste ramo do ensino musical, eu, no caso, apenas queria uma proximidade da parte mais teórica da coisa toda. Estou a me explicar, ignorem minhas explicações, sou péssimo contando histórias ou, melhor, me expressando de uma maneira que não seja através de tons musicais.

Sou um homem solitário. Moro sozinho numa casa em um bairro um tanto afastado do centro de São Paulo, mas sem que ele possa se considerar como um bairro de periferia. Na verdade, a maior parte desta cidade é feita de periferia, estou a divagar. Onde eu estava… Moro sozinho; minha casa é grande demais para mim ou para os meus pertences, então todos os cômodos são praticamente vazios, com exceção do meu quarto, local onde passo a maior parte do meu tempo. Tenho um gato, uma empregada, um trompete e uma porção de livros. Os dois primeiros, são responsáveis pelas minhas dores de cabeça, na maioria dos casos, e os dois últimos, são tudo o que tenho. É engraçado, mas mesmo que o meu dia seja completamente monótono — como a maioria deles — eu posso dizer que me sinto feliz, desde que, no final dele, eu possa chegar em casa e tirar algumas notas do meu trompete, ou, me divertir com alguns contos.

Hoje o dia foi excepcional, talvez por obra do meu cansaço de estar sozinho, ou apenas de um desejo excepcional de fazer algum tipo de amizade. Tem uma garota, do prédio ao lado em que estudo — o prédio onde acontecem as aulas de música e teatro é separado, por motivos dos quais vocês podem imaginar — , tenho a observado durante todo o semestre e, como eu, ela não costuma andar acompanhada; passa os intervalos sozinhas, no banco entre os nossos dois prédios. Gosto do rosto dela, do contorno, da forma em que cada elemento contrasta ou entra em harmonia com os outros, e com que o todo se comunica com a sua impressão de quem, apesar de estar sozinha, gostaria de ter alguém com quem compartilhar seus pensamentos, e por em prática os longos diálogos que cria consigo mesma, quando se distrai.

Me aproximo, penso no que dizer, procuro de alguma maneira juntar uma série de palavras que, embora sozinhas não signifiquem nada, ou mesmo juntas, sem um contexto, mas se forem pronunciadas, talvez com o certo tom de voz, combinado com uma aproximação lenta, porém não muito, possam, quem sabe, me trazer uma resposta afirmativa para um possível convite. Minhas mãos soam, eu tropeço no caminho e sinto um frio na espinha, que só se ameniza quando, ao olhar em sua direção, percebo que ela não estava a olhar pra mim, e, numa tentativa de chamar a sua atenção, pergunto: «Vamos tomar uma cerveja?»

«Vamos tomar uma cerveja?» foi nisso que eu pensei?, nessas palavras que agora ecoam na minha cabeça como se fosse outro a dizer e eu ainda buscasse um sentido entre elas? Ou seria alvoroço demais da minha parte? Sim. Sim, é ansiedade demais da minha parte me culpar por, enfim, já nem sei por que me culparia, e, «vamos» foi a resposta que eu obtive, como se ela apenas esperasse pelo convite, e logo após, perguntou meu nome.

Quão mais belas as coisas podem ser na nossa cabeça, do que realmente são, quando envolvem outros que não sejam nós mesmos a conversar connosco. Talvez eu devesse nunca ter dito nada, ou sequer ter feito qualquer convite, tenho agora a garota em minha frente, algo que para mim parecia tão distante, está aqui, e, curiosamente, as gotas de água condensadas que escorrem do seu copo de cerveja são mais interessantes do que tudo o que ela diz. Não sei se vocês sabem, mas aquelas pequenas gotículas se formam quando as partículas de água no ar se encontram com o copo gelado, assim, elas doam calor e se condensam, passando do seu estado gasoso para o líquido, e eu poderia ficar aqui, o dia inteiro falando sobre química tendo a certeza de que esse assunto é muito mais agradável do que tudo o que ela tem a dizer. É como se eu me sentisse tentado a me condensar também, me unindo às outras gotinhas, no mesmo copo de cerveja, e escorrer, escorrer até me tornar uma poça tediosa e desimportante, e só seria permitido ao mais ignorável dos objetos, como uma plaquinha amarela que indica “piso molhado”, o conhecimento do fato de que ainda estou ali.

Como é que as coisas chegam à este ponto? Existiria alguma combinação de palavras, que em sua ordem possam transmitir o quanto, neste momento, eu não me importo absolutamente com nenhuma das histórias que ela me conta, de uma maneira que não pareça ofensivo ou, que ao menos, não lhe machuque os sentimentos? Deus, como é possível na presença dos outros me sentir ainda mais inválido do que quando estou apenas comigo mesmo. Felizmente, o sinal anuncia o fim do intervalo, eu pago a cerveja e me despeço, silenciosamente.

Por um lado, me sinto arrependido, por outro, vejo que, no final das contas, talvez as coisas que desejamos sejam mais belas antes de se tornarem realidade. Já não importa, é hora de voltar para casa, para o meu gato, meu sossego, minha cama, meu sono.

«É provável que eu tenha pensado em muitas coisas hoje», penso nisso enquanto percebo que não consigo me lembrar de absolutamente nenhuma ideia que se passou pela minha cabeça, enquanto eu voltava para casa. Sinto isso às vezes, parece que quando ando, me desligo de todo o resto e me entrego aos devaneios, ao menos, até alcançar meu destino final, ou, como, neste caso, alguma coisa me assusta: dois homens de capuz descem a rua, na minha direção. A esta hora da noite, numa rua pouco iluminada, é natural de se assustar. Eles desaceleram o passo, eu também. Me encaram nos olhos, e eu encaro os deles, param na minha frente e gritam alguma palavra de ordem, não sei, não prestei atenção. Penso apenas em alguma maneira de fazê-los ir embora. Em alguma… alguma frase, talvez, alguma configuração de fonemas, nada muito inteligente, ou que leve muito tempo para ser dito, nada muito amigável. Alguma coisa, em algum lugar, alguém deve saber…

Tudo bem, já passou. Já não há mais nada para dizer, mais nada para se preocupar. Levei três tiros, mas não importa em qual lugar fui atingido — já que, aparentemente, ainda posso pensar em besteiras. Parece que, de todas as ideias que me visitaram a cabeça nesse curioso regresso à casa, a peculiar é a que me surge agora: passei a vida inteira a procurar por formas e configurações, por sistemas e funções, mas no final, a única coisa que é soberana nesta vida é o acaso.

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