Manifesto da preguiça

Nícolas Barbieri
O EXPRESSO
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6 min readJun 7, 2016

A porta se abre sem ninguém bater. Eu acordo, ainda sem tomar consciência de que tenho consciência.

— Esteve alguém aqui ontem?

Alguém me faz uma pergunta. Minha cabeça pesa demais para levantá-la e direcioná-la à porta, abro um dos olhos e vejo que há um vulto atrás da porta entre-aberta.

— Hein? Esteve alguém cá ontem?

Deve ser a criada, mas que coisa.

— Esteve alguém aqui ontem, mfphmp?

— Não , finalmente respondo.

— Por que a janela está aberta?

— Eu queria acordar cedo

— São uma e meia da tarde

— Deixe ser

— Veio alguém aqui ontem?

— Não.

Ela sai, sem acreditar na minha resposta. Como é que alguém deixa uma criada transgredir tanto a linha entre o serviço e a insolência sem que sequer se esteja no mesmo cômodo? Que seja. Antes de levantar, procuro um bom motivo para fazê-lo. Deixei as janelas abertas, mas não houve sol que entrasse. O dia estava frio e úmido, se pondo a favor da parte de mim que não queria sair da cama; cinza e nublado, como um bom dia de julho deve ser. Sei de tudo e tudo cansa; tenho mais cansaço do que cabe em mim, e como isso me cansa. Tenho preguiça. Não há vergonha nisso. Vergonhoso é acreditar que se tem quando não tem, e que não tem quando de fato se tem preguiça. Sou um preguiçoso e só o posso ser pois posso fazer o que quiser, saber o que quiser e não faço porque tudo é desprovido de importância. É como minha professora dizia, desde os primeiros anos na escola “é muito inteligente, porém preguiçoso”.

Pois bem, toda manhã é assim, e só me resta perguntar a mim como é que a gente pode se levantar assim num salto, sem pensar se realmente deve-se fazê-lo. Ah, talvez seja por que elas tem um trabalho, estudam ou saem para caminhar todos os dias enquanto ainda é cedo. É preciso de um motivo, mas se pensarmos bem neste motivo, veremos que ele é tão oco quanto nós mesmos; aí está a resposta, não se deve pensar antes de levantar. É o que eu deveria fazer. Pensar faz a cabeça pesar e é sempre ela quem deve levantar primeiro, nas manhãs, e deixar-se cair por último, à noite. Que tal fazermos isso de outra maneira: primeiro um pé, depois o outro. Ao alcançar o chão, forço para que o resto do corpo venha junto. Ok, assim faço, caio no tapete ao lado da minha cama, pois — perdão, não vos descreverei meu quarto, daria muito trabalho. Enfim, depois de me derreter amebamente da cama, escorregar pelos cobertores e lençóis até alcançar o chão: sucesso, mas estou pensando demais, tanta informação mantém minha cabeça pesada, o que torna o desgrudar-se do chão uma tarefa desgastante. Ah, mas que preguiça confortável, que dia depressivo, no bom sentido, calmo, estático. Tudo parece estar mais lento e assim fica enquanto deixo a preguiça tomar conta da minha espinha dorsal e formigar meus membros, enquanto isso, me perco no tempo procurando mais tempo e devaneios que me desestimulem as ações. Assim petrificado, os movimentos de um pequeno inseto que sobrevoa meu corpo desconexo desenham impressões linda e sequencialmente no momento que já foi presente, e ainda pode sê-lo enquanto eu me esforço para desta forma imaginá-lo.

Tudo o que sabemos sobre o presente, passado e futuro está errado. Ao menos, essa nova ideia que agora me surge, com a qual brinco como uma criança que faz de uns gravetos e pedras seus brinquedos, talvez sirva de consolo para aqueles cujos dias parecem ser todos iguais. O que seria o passado, para mim? Algo que eu fui, e como imaginei o mundo ao meu redor, é só a isso que ele se resume. Não sou mais, pois talvez já não seja nem eu mesmo, neste momento, apenas um flash de consciência preso dentro de uma casca de carbono e água. O futuro, bem, este não tem nenhuma relevância. Deixemos então de nos procriar e dar continuidade à uma raça tão mesquinha quanto a humana.

Agora eu precisaria levantar do chão e tirar do rosto os resquícios de sono, mas se eu me erguer e for até o lavabo, acabarei por ver minha imagem no espelho e me desconectarei de toda a dignidade dos pensamentos sublimes, lembrando que sou feito de carne, que estou presente, perdendo toda a privacidade que se pode ter de si mesmo.

Toda uma manhã seria desperdiçada. Logo, o pensar no que devo fazer hoje tomaria lugar dos belos sonhos que tive esta noite, dos lugares incríveis que visitei sem me mover, apenas navegando nos mares do meu inconsciente. Então finjo que vou até o lavabo e jogo água fria no rosto, posso imaginar a sensação. Já me sinto mais desperto.

Numa bufada, me imagino indo até a janela, contemplando todo o bairro da Vila Guilherme. Penso então na comunidade, na sociedade, nos homens de ação, nos políticos, nos revolucionários e todos aqueles que tentam melhorar o mundo exterior. Vivemos num mundo injusto? Não, ele sequer existe. Não pensem que sou solipsista, mas há de se concluir que tudo a que temos é a nós mesmos e o que nos diz respeito. Revolucionar? Mudar o sistema? Não, isso tudo não faz parte de nós, apenas produto da nossa falha capacidade de lidarmos com nós mesmos. Nos frustramos tentando nos tornar pessoas melhores e acabamos por querer tornar do mundo um lugar melhor, um mundo feito de pessoas, falhos abortos como nós. Tudo é o que fazemos do todo, como o imaginamos, como o vemos, de acordo com a nossa limitação educacional e cultural. Como se desde que nascemos nos tivesse sido colocado um cabresto, permitindo e negando nossas ações futuras, fazendo com que tudo o que não faça parte do grupo conhecido nos seja completamente estranho, nos dizendo que a verdadeira liberdade só pode existir dentro de um limite, quando o verdadeiro só existe na nossa… enfim, perdi a linha de raciocínio. Eu eu queria apenas dizer como sou privilegiado por ter uma janela no quarto, mas acho que fui bem entendido.

Fecho os olhos e sem me mover começo a arrumar a cama. Percebo, com isto, uma post-it na cabeceira da cama com a frase: “Os pensamentos são nossos, mas o fim é do acaso”… Talvez o cotidiano também, é todo dele, nada podemos fazer para mudar o que sempre será mas ainda sim tentamos, essa é talvez a natureza humana, cometer sempre os mesmos erros em prol de um código que nos serve apenas para dar sentido ao curtíssimo período de tempo em que estamos vivos, que passa despercebido se comparado com o tempo do planeta em que vivemos, e das outras esferas, às vezes elípticas, que são tão maiores do que nós, mas não imunes às rotinas. Tudo se resume à um looping cínico. Como estes livros em estantes que cobrem as minhas paredes, não preciso ler nenhum deles, é óbvio o fim que a leitura deles me leva. É o cientista que passa a vida inteira estudando e acumulando livros para descobrir que nenhum conhecimento é necessário. Todo livro é escrito por alguém, que bota a alma de si no seu trabalho, seja ele artístico ou científico, no final, o conhecimento que eles nos tem a passar é invasivo, como um corpo estranho, infeccioso, que se finca em nosso juízo e altera nossa pessoalidade; abre a porta sem bater e com profunda insolência, mas sem entrar efetivamente, nos tira o sono e questiona sobre uma questão que para nós de nada interessa.

É tudo monótono, só nos nossos sonhos podemos nos divertir, mas até isso o senso de dever nos tira e nos elucida a correr atrás deles, como o burro guiado pela cenoura. Mentira, balela, nada disso. Por que eu rebaixaria um sonho ao nível material, ao dinheiro, fama e outros falsos prazeres que nos viciam. “Ser ou não ser: eis a questão”; não: ser é não ser, esta é a questão, e o resto é distração, hehehe, perdoem-me a heresia, mas que tal “Penso, logo não tem por que existir”. Ou ainda, “entre ser o primeiro na aldeia ou o segundo em toda a Roma, eu prefiro ser ninguém em lugar nenhum”.

O mais curioso disso tudo, é que eu não acredito em uma palavra que acabei de dizer, e agora é hora de levantar, acho que o almoço já está servido.

Texto dedicado à Beatriz Rocco Blanco

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