Um sábado em setenta e cinco

Isadora Candal
O EXPRESSO
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4 min readOct 18, 2016

Maria era do tipo que acordava todos os dias, em ponto, às sete e meia. Até aos sábados, como era hoje. Acordou, escovou os dentes e os cabelos, logo seguiu para bater à porta da Larinha, que, para variar, já estava acordada e muito ocupada com suas figurinhas.

“Larinha, vem com a mãe comprar o pão pro café, vem.”

“Puxa, mãe, a senhora precisa mesmo que eu vá? Quando eu for adulta eu vou ir sozinha pra todo canto!”

“Tudo bem, mas agora eu sou a adulta e você é a criança e vai comigo, sim. Pode até levar as bolinhas de gude, se quiser. Vamo!”

Antes não tivesse dito isso.

Larinha foi quase num pulo ao baú pôr as sandálias e pegar as bolinhas. Era assim, corria pra lá e pra cá, rodava pião e dançava ao som dos discos da mãe, que só fingia ser durona, mas achava uma graça.

Saíram. O som das bolinhas de gude na mão da menina estava no mesmo ritmo das passadas que suas pequenas pernas davam. Pararam, era o semáforo. Verde. Ela olha para a luz do sol refletindo as cores das bolinhas na rua. Amarelo agora, não tem problema passar, né? Ela joga uma das bolinhas à frente e a vê pingar. Uma, duas, três vezes. Solta a mão da mãe e vai em frente. Maria se vira e vê as sandálias, o cabelo e um pedido. O último. “Pera aí, mamãe, ela escapou de mim”. Vermelho, já era vermelho. Assim que Larinha tirou os pés da calçada e eles tocaram a rua, a luz ficou vermelha. Maria vira. Vira também que a Veraneio, grandiosa como era, não pararia. O semáforo indicava, mas não pararia, estava rápido demais. Não parou. E assim o barulho de todas as bolinhas pingando no chão ecoou no ar. Um, dois, três, quatro. Um, dois, três. Tec, tec, tec. O freio também fez barulho, não importava mais.

As sandálias de Larinha agora eram vermelhas, e parte do chão também era vermelha, parte de sua blusa florida e de seu rosto infantil. O parachoque da Veraneio também manchara. Agora era impossível não ver a cor. Maria corre e se vê ajoelhada diante da filha.

“Lara, olha tuas bolinhas, filha. Larinha! Larinha, levanta.” Tua mão segurava a dela. Sacudia a menina desesperadamente, esperava que ela dissesse “Vê só como os adultos não sabem de nada? Nem das coisas de adultos eles sabem. No vermelho se para, ouviu?” Larinha era desbocada e muito sagaz, falava cada coisa e fazia perguntas de deixar a gente sem resposta… Agora não falava nada. Sua boca entreaberta nem sequer suspirava. Nada. Maria, completamente desnorteada, não acreditava, não sabia o que pensar, já não chamava mais pelo nome da pequenina. Tudo o que pôde ouvir foi o som da Veraneio ligando e saindo, cada vez mais baixo, Maria logo vira para ver a placa do carro, manchada com o sangue dela. Lê as três letras e quatro números que ficariam fixos em sua memória para sempre.

Maria não queria dinheiro, não queria que tivessem pena dela. Queria encontrar o motorista. Ah, o motorista. Larinha se fora e nesse momento já repousava com semblante terno e angelical. Não havia mais sangue, suas sandálias foram trocadas por sapatos de boneca. Sua nova cama não tinha migalhas de bolacha, lápis de cor e nem cobertas, era só para ela. Quem era atrás daquele vidro, na Veraneio? O olhar de Maria acompanhava o movimento das pás, já não via mais o rosto da filha. Segurava sua fita rosa e suas bolinhas de gude. Suas bolinhas de gude.

Quando abriu a porta e se viu sozinha dentro de casa, todos os dias que seguiram tornaram-se negros. Não havia riso. Não era possível ouvir qualquer disco sem que não lembrasse dos pulinhos e danças dela. Seu quarto parmanecera o mesmo desde aquele sábado.

A placa. Assim que conseguiu força, mesmo que pouca, Maria foi à estação policial, seu boletim já estava feito, ela exigiu que fosse tomada alguma providência. Queria saber quem era o dono do veículo. O porquê não ficara para prestar ajuda. Queria justiça. Lara era pequenina demais, Maria já sofrera demais.

Não se têm notícia do carro, da placa e muito menos do dono, a polícia disse tentar fazer o melhor que pôde no caso, entretanto, lançaram nota argumentando a falta de provas. Provas? Vá tu mesmo ao Mausoléu, seu guarda, lá descansa a maior de todas as provas. “Não há certeza de que o semáforo indicava realmente o vermelho, não temos testemunhas consistentes, senhora.” Arquivou-se o caso. Enterrou-se Lara. Ignorou-se a Lei.

Maria sentia-se a mais impotente dos seres. Ouvia a risada de Larinha diversas vezes. E, em algumas delas, a menina realmente rira para a mãe. A mãe não suportaria viver sem tua pequena. Seis anos após o sábado, teu consolo foi o Gim no canto da prateleira. Faria quinze anos, se tornaria uma moça. Junto com o Gim, calmamtes. A cada trezentos e sessenta e cinco dias a mais, Maria suportava menos. Deita-se na cama da filha, o Gim na mão, os comprimidos já todos engolidos, dá uns goles e olha em volta. A cama onde deitava tinha farelos, lápis de cor e cobertas. Cobertas com o cheiro dela. “Nossa, mãe, mas ele tá a mesma bagunça, ein? Me desculpa por sair sem arrumar nada.” Viu Larinha, sentada em frente ao álbum de figuras, coladas todas tortas. Não podia ser. Bebeu o Gim e nem sentiu o gosto na garganta, estava imóvel na cama. “Mãe, eu tenho que te mostrar uma árvore grandona de Jabuticaba que eu encontrei. Vem?” Maria fechou os olhos e deu a mão para a filha. Foram, sem entender as coisas dos adultos, sem entender a justiça dos adultos e o medo que têm de crescer junto com a idade.

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Isadora Candal
O EXPRESSO

Quero fazer filmes, viajar, debater assuntos legais, ler livros e dormir. Não necessariamente nessa ordem.